16 Abril 2021
'Nós também éramos punks, mas uns punks diferentes'
Membros-fundadores de um dos grupos mais carismáticos do início dos anos noventa - os Capitão Fantasma - Eduardo e Nazaré são ícones do rockabilly. Quer dizer, eles dizem que eram do rock 'n' roll, mas o facto é que marcaram um antes e um depois para um género musical quase invisível em Portugal, pelo menos até à gravação de Hu Huá Uá. Agora e volvidas quase três décadas daquela experiência, as palavras do ex-guitarrista e da ex-baixista da banda falam-nos de amizade, de punk e de liberdade.
Na Fonoteca Municipal do Porto, temos uma cópia de um disco dos Capitão Fantasma chamado Hu Uá Uá. Diz-vos alguma coisa?
Nazaré: Fui eu que fiz essa capa, com uma fotografia tirada por mim ao nosso filho Ricardo [sem o qual esta entrevista não seria possível e a quem agradecemos], que naquela altura tinha três meses. Quanto ao resultado, não foi o que esperávamos, mas não faz mal. Hoje seria diferente, mas a oportunidade que tivemos e aquela vontade enorme de fazer um disco, sem ter ainda muito conhecimento, levou àquele resultado e foi o que foi. Fomos a única banda daquela época, do nosso género, a conseguir editar um LP, passar na rádio e ir à televisão. Isso foi porreiro.
Eduardo: Marcou a época em que foi feito, mas deixou-nos insatisfeitos. É natural que as coisas falhassem porque foi uma primeira ida a estúdio. A produção não era nossa, nós tínhamos uma coprodução, mas também éramos muito verdes nisso. Lembro-me perfeitamente que todos nós, quando ouvimos o disco, ficamos um nadinha dececionados. O som estava muito limpo, nós queríamos algo mais sujo.
Desse disco, chama particularmente à atenção a participação de pessoas que estiveram muito ligadas ao sucesso de uma banda vossa contemporânea, mas com um percurso completamente diferente, os Delfins. Na penúltima música do disco, por exemplo, há um solo de piano do Luis Sampaio, compositor da Soltem os prisioneiros e ex-membro dos Radar Kadafi.
Eduardo: A presença deles foi tudo resultado de uma série de percalços, especialmente a do Sampaio, que entrou à última da hora. Nós tínhamos um pianista já agendado e ensaiado na pré-produção, que de repente roeu a corda, desapareceu de cena e nós ficámos pendurados. Como tínhamos as coisas feitas já a pensar no piano, tivemos que recorrer ao Luis, que entrou já a meio da gravação. Ele esteve a aprender as músicas enquanto nós gravávamos as nossas partes, mas fez um excelente trabalho. Provavelmente melhor do que o outro com quem tínhamos ensaiado. Disso não nos podemos queixar.
E a produção do Fernando Cunha?
Eduardo: Na altura, o Paulo Pedro Gonçalves, que nós tínhamos pensado para a produção, por várias razões, afastou-se de nós e o Fernando Cunha foi-nos sugerido através da União Lisboa, que era a nossa agência na altura. Mas também tivemos o Jonathan Miller que nos ajudou em algumas coisas. Como era inglês sabia mais de como soava o rock ‘n’ roll.
Deixando um pouco o disco como ponto de chegada, qual foi o vosso percurso musical até aos Capitão Fantasma?
Eduardo: Eu comecei a tocar com o advento do punk-rock. Foi aí que senti a necessidade de comprar uma guitarra elétrica e aprender a tocar: queria era barulho e distorção. A primeira banda onde toquei mais a sério foram os Mata-Ratos, com quem ainda fiz dois concertos. Depois houve um interregno e só em 1985, com um colega do meu bairro, que era o João [Johnny Freire], formamos os Emílio E A Tribo Do Rum. Mais tarde, achei que o Jorge [Jorge Bruto], que escrevia bem e tinha boa presença, era o vocalista ideal para da banda e ele juntou-se a nós. Os Emílio acabaram em 1988 e no ano seguinte estávamos a formar os Capitão Fantasma. E foi a partir daí que a Nazaré, que já cantava e dançava com os Emílio, integrou a banda como baixista.
Nazaré: Muita da informação que eles recebiam era eu que enviava, porque eu estava em Londres nos anos oitenta, no início do psychobilly. Fui para lá com 18 anos, em 1983, e regressei em 1987, pela amizade e pelo que me unia ao Pinela e ao Jorge. Eles convenceram-me porque eu gostava das cassetes que eles me mandavam dos Emílio. Andávamos sempre juntos e eu queria era estar com os gajos, não fazia sentido formar uma banda da qual eu não fizesse parte. Sempre odiei a cena das gajas, das groupies e não sei quê. Os nossos amigos eram todos punks, mesmo muito punks. Era aquele pessoal de Alvalade, o Ribas e os Cus de Judas e não sei quê. Nós também éramos punks, mas uns punks diferentes, e quando surgiu a ideia de fazer uma banda depois dos Emílio, nós estávamos no Gingão e eu disse “eh pá era mesmo porreiro era se eu soubesse tocar” e no dia a seguir o Pinela estava-me a ligar para casa para eu ir aprender a tocar baixo com ele. Ainda nem namorávamos, éramos melhores amigos, que é o que somos ainda hoje.
É raro ver uma mulher num universo tão masculino como aquele que se vivia no punk daquela altura em Portugal.
Nazaré: Não, naquela altura não havia ninguém. Mas sabes que eu nunca me vi como uma mulher. Agora talvez já seja mais senhora, já tenho idade para isso [risos], mas naquela altura sempre me vi como um gajo. Quando havia merda, eu era pior que eles todos. Sempre me fizeram muito essa pergunta, mas eu nunca me vi como uma miúda. No entanto, aproveitava o facto de ser uma miúda na funcionalidade da banda: aproveitava para não carregar nada, para não montar e eles é que faziam tudo. Isso sabia-me bem mas no resto eu era um mais um.
Emílio, Capitão, são grupos que tocavam um tipo de punk-rock com muita influência rockabilly, que até é um estilo musical que em Portugal nunca teve muita expressão, nem antes nem depois de vocês. Pode dizer-se que vocês foram pioneiros?
Nazaré: Diz que sim [risos]. De facto não havia ninguém como nós, por isso é que se calhar nos juntamos. O conceito da banda, a razão da nossa união, não era a nível musical, de conhecimento ou de técnica mas sim de amizade, porque não havia muita gente a ouvir e a gostar do que nós gostávamos, eu, o Pinela e o Jorge.
Eduardo: Aliás, a partir do momento em que nós aparecemos, começaram a surgir algumas bandas com essa estética rockabilly. Embora nós nunca quiséssemos estar excessivamente presos a uma etiqueta, para podermos ser livres. Quando a imprensa nos chamava rockabilly nós respondíamos: nós fazemos rock ’n' roll! Sempre foi um grande guerra que a gente tinha nas entrevistas.
Claro, é inevitável a associação estética a bandas como os Cramps.
Eduardo: Sim, mas os Cramps também eram uma banda punk. Foram uma das nossas maiores influências.
E que outros nomes é que vos influenciaram?
Eduardo: No tempo dos Emílio ouvíamos muito punk, mas também jazz: Birthday Party, Charles Mingus, os clássicos de rockabilly como Eddie Cochran, Gene Vincent e o Elvis, claro. Mas estás a ver… já tens aqui uma grande mistura.
Depois do disco, abandonaram um projeto fundado por vocês. Quais foram as razões por trás dessa decisão?
Eduardo: Basicamente, nós queríamos apostar nos concertos e fazer música, que até já tínhamos composto para um segundo disco. Infelizmente, tivemos que pensar nas coisas em termos de subsistência, mas os outros viviam em casa dos pais e estavam-se a cagar se tocavam, se não tocavam. Nós queríamos rentabilizar o projeto e precisávamos de dinheiro e foi um bocado essa a razão.
Nazaré: Foi quase como se tivesse sido um divórcio. A saída dos Capitão Fantasma deu-nos uma liberdade incrível. Como tínhamos essa sede da música e do rock ’n' roll e o trabalho nos dava a possibilidade material de poder usufruir disso, começámos a viajar imenso e a ir ao encontro do que gostamos, do que nos alimenta a alma, como por exemplo as tournées dos Cramps, que nós seguimos. E fomos vê-los a todos os sítios. Isso já ninguém me tira.
E atualmente qual é a vossa relação com a música e com o vinil?
Nazaré: O Pinela diz que eu sou muito quadrada, que ouço sempre as mesmas coisas, mas a mim o que me faz ficar contente é ouvir rockabilly.
Eduardo: Eu estou sempre a ouvir música e nunca deixei o vinil. A nossa coleção é praticamente toda em vinil e o que tínhamos em CD vai sendo substituído pelo vinil. Desde os anos 90 que também sou DJ e levo isso muito a sério. Isso sim, só passo 45 rpm.
Nazaré: A minha relação com a música também é através do vintage. No baixo nunca mais peguei. Nunca fui uma virtuosa portanto não fazia sentido. Nem nunca tive vontade nenhuma de ter outra banda porque a minha cena era estar com os meus amigos, com quem havia uma energia que não se repete porque estas coisas não se forçam. Mas há uma coisa que eu sempre disse aos gajos: nunca houve uma baixista tão gira como eu [risos].
Na Fonoteca Municipal do Porto, temos uma cópia de um disco dos Capitão Fantasma chamado Hu Uá Uá. Diz-vos alguma coisa?
Nazaré: Fui eu que fiz essa capa, com uma fotografia tirada por mim ao nosso filho Ricardo [sem o qual esta entrevista não seria possível e a quem agradecemos], que naquela altura tinha três meses. Quanto ao resultado, não foi o que esperávamos, mas não faz mal. Hoje seria diferente, mas a oportunidade que tivemos e aquela vontade enorme de fazer um disco, sem ter ainda muito conhecimento, levou àquele resultado e foi o que foi. Fomos a única banda daquela época, do nosso género, a conseguir editar um LP, passar na rádio e ir à televisão. Isso foi porreiro.
Eduardo: Marcou a época em que foi feito, mas deixou-nos insatisfeitos. É natural que as coisas falhassem porque foi uma primeira ida a estúdio. A produção não era nossa, nós tínhamos uma coprodução, mas também éramos muito verdes nisso. Lembro-me perfeitamente que todos nós, quando ouvimos o disco, ficamos um nadinha dececionados. O som estava muito limpo, nós queríamos algo mais sujo.
Desse disco, chama particularmente à atenção a participação de pessoas que estiveram muito ligadas ao sucesso de uma banda vossa contemporânea, mas com um percurso completamente diferente, os Delfins. Na penúltima música do disco, por exemplo, há um solo de piano do Luis Sampaio, compositor da Soltem os prisioneiros e ex-membro dos Radar Kadafi.
Eduardo: A presença deles foi tudo resultado de uma série de percalços, especialmente a do Sampaio, que entrou à última da hora. Nós tínhamos um pianista já agendado e ensaiado na pré-produção, que de repente roeu a corda, desapareceu de cena e nós ficámos pendurados. Como tínhamos as coisas feitas já a pensar no piano, tivemos que recorrer ao Luis, que entrou já a meio da gravação. Ele esteve a aprender as músicas enquanto nós gravávamos as nossas partes, mas fez um excelente trabalho. Provavelmente melhor do que o outro com quem tínhamos ensaiado. Disso não nos podemos queixar.
E a produção do Fernando Cunha?
Eduardo: Na altura, o Paulo Pedro Gonçalves, que nós tínhamos pensado para a produção, por várias razões, afastou-se de nós e o Fernando Cunha foi-nos sugerido através da União Lisboa, que era a nossa agência na altura. Mas também tivemos o Jonathan Miller que nos ajudou em algumas coisas. Como era inglês sabia mais de como soava o rock ‘n’ roll.
Deixando um pouco o disco como ponto de chegada, qual foi o vosso percurso musical até aos Capitão Fantasma?
Eduardo: Eu comecei a tocar com o advento do punk-rock. Foi aí que senti a necessidade de comprar uma guitarra elétrica e aprender a tocar: queria era barulho e distorção. A primeira banda onde toquei mais a sério foram os Mata-Ratos, com quem ainda fiz dois concertos. Depois houve um interregno e só em 1985, com um colega do meu bairro, que era o João [Johnny Freire], formamos os Emílio E A Tribo Do Rum. Mais tarde, achei que o Jorge [Jorge Bruto], que escrevia bem e tinha boa presença, era o vocalista ideal para da banda e ele juntou-se a nós. Os Emílio acabaram em 1988 e no ano seguinte estávamos a formar os Capitão Fantasma. E foi a partir daí que a Nazaré, que já cantava e dançava com os Emílio, integrou a banda como baixista.
Nazaré: Muita da informação que eles recebiam era eu que enviava, porque eu estava em Londres nos anos oitenta, no início do psychobilly. Fui para lá com 18 anos, em 1983, e regressei em 1987, pela amizade e pelo que me unia ao Pinela e ao Jorge. Eles convenceram-me porque eu gostava das cassetes que eles me mandavam dos Emílio. Andávamos sempre juntos e eu queria era estar com os gajos, não fazia sentido formar uma banda da qual eu não fizesse parte. Sempre odiei a cena das gajas, das groupies e não sei quê. Os nossos amigos eram todos punks, mesmo muito punks. Era aquele pessoal de Alvalade, o Ribas e os Cus de Judas e não sei quê. Nós também éramos punks, mas uns punks diferentes, e quando surgiu a ideia de fazer uma banda depois dos Emílio, nós estávamos no Gingão e eu disse “eh pá era mesmo porreiro era se eu soubesse tocar” e no dia a seguir o Pinela estava-me a ligar para casa para eu ir aprender a tocar baixo com ele. Ainda nem namorávamos, éramos melhores amigos, que é o que somos ainda hoje.
É raro ver uma mulher num universo tão masculino como aquele que se vivia no punk daquela altura em Portugal.
Nazaré: Não, naquela altura não havia ninguém. Mas sabes que eu nunca me vi como uma mulher. Agora talvez já seja mais senhora, já tenho idade para isso [risos], mas naquela altura sempre me vi como um gajo. Quando havia merda, eu era pior que eles todos. Sempre me fizeram muito essa pergunta, mas eu nunca me vi como uma miúda. No entanto, aproveitava o facto de ser uma miúda na funcionalidade da banda: aproveitava para não carregar nada, para não montar e eles é que faziam tudo. Isso sabia-me bem mas no resto eu era um mais um.
Emílio, Capitão, são grupos que tocavam um tipo de punk-rock com muita influência rockabilly, que até é um estilo musical que em Portugal nunca teve muita expressão, nem antes nem depois de vocês. Pode dizer-se que vocês foram pioneiros?
Nazaré: Diz que sim [risos]. De facto não havia ninguém como nós, por isso é que se calhar nos juntamos. O conceito da banda, a razão da nossa união, não era a nível musical, de conhecimento ou de técnica mas sim de amizade, porque não havia muita gente a ouvir e a gostar do que nós gostávamos, eu, o Pinela e o Jorge.
Eduardo: Aliás, a partir do momento em que nós aparecemos, começaram a surgir algumas bandas com essa estética rockabilly. Embora nós nunca quiséssemos estar excessivamente presos a uma etiqueta, para podermos ser livres. Quando a imprensa nos chamava rockabilly nós respondíamos: nós fazemos rock ’n' roll! Sempre foi um grande guerra que a gente tinha nas entrevistas.
Claro, é inevitável a associação estética a bandas como os Cramps.
Eduardo: Sim, mas os Cramps também eram uma banda punk. Foram uma das nossas maiores influências.
E que outros nomes é que vos influenciaram?
Eduardo: No tempo dos Emílio ouvíamos muito punk, mas também jazz: Birthday Party, Charles Mingus, os clássicos de rockabilly como Eddie Cochran, Gene Vincent e o Elvis, claro. Mas estás a ver… já tens aqui uma grande mistura.
Depois do disco, abandonaram um projeto fundado por vocês. Quais foram as razões por trás dessa decisão?
Eduardo: Basicamente, nós queríamos apostar nos concertos e fazer música, que até já tínhamos composto para um segundo disco. Infelizmente, tivemos que pensar nas coisas em termos de subsistência, mas os outros viviam em casa dos pais e estavam-se a cagar se tocavam, se não tocavam. Nós queríamos rentabilizar o projeto e precisávamos de dinheiro e foi um bocado essa a razão.
Nazaré: Foi quase como se tivesse sido um divórcio. A saída dos Capitão Fantasma deu-nos uma liberdade incrível. Como tínhamos essa sede da música e do rock ’n' roll e o trabalho nos dava a possibilidade material de poder usufruir disso, começámos a viajar imenso e a ir ao encontro do que gostamos, do que nos alimenta a alma, como por exemplo as tournées dos Cramps, que nós seguimos. E fomos vê-los a todos os sítios. Isso já ninguém me tira.
E atualmente qual é a vossa relação com a música e com o vinil?
Nazaré: O Pinela diz que eu sou muito quadrada, que ouço sempre as mesmas coisas, mas a mim o que me faz ficar contente é ouvir rockabilly.
Eduardo: Eu estou sempre a ouvir música e nunca deixei o vinil. A nossa coleção é praticamente toda em vinil e o que tínhamos em CD vai sendo substituído pelo vinil. Desde os anos 90 que também sou DJ e levo isso muito a sério. Isso sim, só passo 45 rpm.
Nazaré: A minha relação com a música também é através do vintage. No baixo nunca mais peguei. Nunca fui uma virtuosa portanto não fazia sentido. Nem nunca tive vontade nenhuma de ter outra banda porque a minha cena era estar com os meus amigos, com quem havia uma energia que não se repete porque estas coisas não se forçam. Mas há uma coisa que eu sempre disse aos gajos: nunca houve uma baixista tão gira como eu [risos].