01 Agosto 2022
Viagem ao revolucionário ano de 1982 através da coleção da Fonoteca Municipal do Porto
Antes de olharmos para a amostra de importantes títulos nacionais de 1982 na coleção da Fonoteca, é impossível não destacar dois discos – um deles português – que representam de forma perfeita a vanguarda musical que nesse ano também soube aproveitar a mais inovadora tecnologia para traduzir visões musicais desafiantes, futuristas e disruptivas, discos que dessa forma garantiram um lugar nos compêndios de História e que souberam desbravar novos caminhos desafiando as convenções do seu tempo.
Em Portugal, essa vertigem de futuro teve também urgente tradução num registo que também foi alvo de merecida reedição, CTU Telectu dos Telectu de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto.
Em 1982, uma consequência direta da ligação dos GNR à Valentim de Carvalho foi a edição deste álbum de estreia dos Telectu que nesta altura eram uma espécie de projeto alternativo dos GNR com Vítor Rua e Toli a trabalharem lado a lado com Jorge Lima Barreto. Trata-se de um disco de eletrónica experimental, inspirado na ficção científica de Philip K. Dick e nas mais avançadas propostas que chegavam dos lados do rock alemão. Oito temas que soam absolutamente singulares na mais vasta paisagem da música portuguesa da época. Ricardo Saló, na entrada dedicada ao álbum de estreia dos Telectu no livro 111 Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública (5), escreve: “Se a longa ‘intro’ de Lotaria Solar ainda promete poesia espacial no sintetizador de Jorge Lima Barreto (a qual assombra a peça, como um contracanto), logo Vítor Rua monta o seu corcel e parte numa galopada de baixo eléctrico, como a lembrar que é no dia a seguir à new wave que decorre esta experiência – onde o baixo simula um ‘funk branco’ enquanto o canto catártico (Dr. Puto) recolhe no modelo dos P.I.L., de John Lydon, a filiação estética inicial do projecto. Já Ubik (faixa2), assegura ainda Saló, “contém tudo aquilo de que o – então – quarteto (ainda Toli, bateria) necessitava para impor-se como o mais sério pregoeiro de um mundo novo em Portugal: uma entidade electrónica, com sequenciador a ditar a estrutura do edifício, e percussão metronómica a sublinhar a firmeza das fundações, mais a guitarra de Rua dispondo de espaço para um soul mining pleno de verve criativa e de fluência de discurso.” Caixas de ritmos programadas em diferentes velocidades para polirritmias dissonantes, cravo, piano preparado, um Roland Jupiter 8, orgão “positivo” (como o apelidou Eduardo Paes, nas notas da edição em CD), bateria “motorik”, baixo escorregadio e guitarras ácidas, voz delirante e palavras impercetíveis, garrafas de Coca-Cola percutidas, os efeitos de um Eventide, loops, feedback, abuso experimental da mesa de mistura... A ousadia de Ctu Telectu tem, de facto, poucos equivalentes na história do rock feito em Portugal e impõe-se como um estranho e alien objeto artístico num 1982 ainda imberbe e tímido na exploração de vias alternativas. Na verdade, é difícil perceber se em 2019 já teremos alcançado o futuro que este álbum tão energicamente buscava.
Companheiro indissociável desse registo inaugural dos Telectu é Independança dos GNR. O arrojo do álbum de estreia do Grupo Novo Rock começava logo no título: Independança! As leituras poderiam ser variadas: proclamar a dança num país que musicalmente ainda vivia vergado pelo peso das palavras com que uma geração tinha construído abril; dar vivas à independência quando se vivia em pleno debate da entrada para a Europa; afirmar, enfim, um caráter “indie” quando se assinava com a maior editora portuguesa. E essa independência existia, de facto: o grupo conseguiu meter no lado B do álbum uma experiência de estúdio que parecia inconsequente, mas revelava um alinhamento perfeito com experiências que chegavam de Londres ou Nova Iorque. E depois havia todas as canções que preenchiam o lado A do vinil: de Agente Único a Independança passando por O Slow Que veio do Frio, Dupond & Dupond ou, sobretudo, essa perfeita pérola pop que responde ao título Hardcore. Rui Reininho, Vítor Rua, Alexandre Soares, Toli César Machado e Manuel Megre cozinharam em Independança um verdadeiro OVNI sem real correspondência no panorama do então denominado “rock português”. E talvez por isso mesmo passaram ao lado do sucesso que já havia bafejado Rui Veloso e os UHF e que tocaria também os Taxi ou os Heróis do Mar. Nada que uma teimosia criativa não houvesse de resolver. Mas para a história ficou um álbum que cruzou rock e eletrónica, que afirmou uma ligação direta à new wave do estrangeiro e que de facto lhes garantiu o futuro que todos soubemos aplaudir.
Para terminar esta viagem no tempo até 1982 através do importante acervo da Fonoteca Municipal do Porto, fica aqui uma lista de discos portugueses lançados nesse ano que hoje são não apenas importantes peças de coleção, mas, sobretudo, testemunhos da criatividade e pujança de uma indústria fonográfica local que então dava importantes passos para cimentar as fundações que hoje sustentam o que musicalmente se faz por cá. E se vários destes nomes continuam de alguma maneira no ativo – GNR, Lena D’Água, Paulo de Carvalho, Bonga – isso significa que as sementes lançadas ao solo há 4 décadas deram generosos frutos.
O primeiro é, sem dúvida, Big Science de Laurie Anderson, obra-prima absoluta que ainda recentemente mereceu oportuna reedição comemorativa do seu redondo aniversário e, claro, da sua extrema importância. Hello? Is anybody home? Well, you don't know me, but I know you. And I've got a message to give to you. Here come the planes. So you better get ready. Quarenta anos depois, estas palavras continuam a sublinhar um novo e arrepiante significado à luz da América pós 9/11. Laurie Anderson menciona essa nova pertinência de O Superman nas notas da reedição de Big Science, o seu primeiro álbum a solo, editado originalmente em 1982. Anderson já tinha colaborado em edições do eixo John Giorno/William Burroughs, mas nada podia ter preparado o mundo para Big Science: é um álbum extraordinário onde cada palavra resulta de um processo refletivo tão profundo como o que anima o som – ecos de new wave colados a um sentido verdadeiramente experimental onde a eletrónica traduz o que se canta, uma América tecnologicamente transformada, como a que Laurie descreve no tema Big Science. Quatro décadas volvidas, este álbum permanece tão vibrante como no dia em que foi originalmente editado.
Em Portugal, essa vertigem de futuro teve também urgente tradução num registo que também foi alvo de merecida reedição, CTU Telectu dos Telectu de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto.
Em 1982, uma consequência direta da ligação dos GNR à Valentim de Carvalho foi a edição deste álbum de estreia dos Telectu que nesta altura eram uma espécie de projeto alternativo dos GNR com Vítor Rua e Toli a trabalharem lado a lado com Jorge Lima Barreto. Trata-se de um disco de eletrónica experimental, inspirado na ficção científica de Philip K. Dick e nas mais avançadas propostas que chegavam dos lados do rock alemão. Oito temas que soam absolutamente singulares na mais vasta paisagem da música portuguesa da época. Ricardo Saló, na entrada dedicada ao álbum de estreia dos Telectu no livro 111 Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública (5), escreve: “Se a longa ‘intro’ de Lotaria Solar ainda promete poesia espacial no sintetizador de Jorge Lima Barreto (a qual assombra a peça, como um contracanto), logo Vítor Rua monta o seu corcel e parte numa galopada de baixo eléctrico, como a lembrar que é no dia a seguir à new wave que decorre esta experiência – onde o baixo simula um ‘funk branco’ enquanto o canto catártico (Dr. Puto) recolhe no modelo dos P.I.L., de John Lydon, a filiação estética inicial do projecto. Já Ubik (faixa2), assegura ainda Saló, “contém tudo aquilo de que o – então – quarteto (ainda Toli, bateria) necessitava para impor-se como o mais sério pregoeiro de um mundo novo em Portugal: uma entidade electrónica, com sequenciador a ditar a estrutura do edifício, e percussão metronómica a sublinhar a firmeza das fundações, mais a guitarra de Rua dispondo de espaço para um soul mining pleno de verve criativa e de fluência de discurso.” Caixas de ritmos programadas em diferentes velocidades para polirritmias dissonantes, cravo, piano preparado, um Roland Jupiter 8, orgão “positivo” (como o apelidou Eduardo Paes, nas notas da edição em CD), bateria “motorik”, baixo escorregadio e guitarras ácidas, voz delirante e palavras impercetíveis, garrafas de Coca-Cola percutidas, os efeitos de um Eventide, loops, feedback, abuso experimental da mesa de mistura... A ousadia de Ctu Telectu tem, de facto, poucos equivalentes na história do rock feito em Portugal e impõe-se como um estranho e alien objeto artístico num 1982 ainda imberbe e tímido na exploração de vias alternativas. Na verdade, é difícil perceber se em 2019 já teremos alcançado o futuro que este álbum tão energicamente buscava.
Companheiro indissociável desse registo inaugural dos Telectu é Independança dos GNR. O arrojo do álbum de estreia do Grupo Novo Rock começava logo no título: Independança! As leituras poderiam ser variadas: proclamar a dança num país que musicalmente ainda vivia vergado pelo peso das palavras com que uma geração tinha construído abril; dar vivas à independência quando se vivia em pleno debate da entrada para a Europa; afirmar, enfim, um caráter “indie” quando se assinava com a maior editora portuguesa. E essa independência existia, de facto: o grupo conseguiu meter no lado B do álbum uma experiência de estúdio que parecia inconsequente, mas revelava um alinhamento perfeito com experiências que chegavam de Londres ou Nova Iorque. E depois havia todas as canções que preenchiam o lado A do vinil: de Agente Único a Independança passando por O Slow Que veio do Frio, Dupond & Dupond ou, sobretudo, essa perfeita pérola pop que responde ao título Hardcore. Rui Reininho, Vítor Rua, Alexandre Soares, Toli César Machado e Manuel Megre cozinharam em Independança um verdadeiro OVNI sem real correspondência no panorama do então denominado “rock português”. E talvez por isso mesmo passaram ao lado do sucesso que já havia bafejado Rui Veloso e os UHF e que tocaria também os Taxi ou os Heróis do Mar. Nada que uma teimosia criativa não houvesse de resolver. Mas para a história ficou um álbum que cruzou rock e eletrónica, que afirmou uma ligação direta à new wave do estrangeiro e que de facto lhes garantiu o futuro que todos soubemos aplaudir.
Para terminar esta viagem no tempo até 1982 através do importante acervo da Fonoteca Municipal do Porto, fica aqui uma lista de discos portugueses lançados nesse ano que hoje são não apenas importantes peças de coleção, mas, sobretudo, testemunhos da criatividade e pujança de uma indústria fonográfica local que então dava importantes passos para cimentar as fundações que hoje sustentam o que musicalmente se faz por cá. E se vários destes nomes continuam de alguma maneira no ativo – GNR, Lena D’Água, Paulo de Carvalho, Bonga – isso significa que as sementes lançadas ao solo há 4 décadas deram generosos frutos.
Nota: Todos os discos aqui referenciados e com links para o YouTube estão incluídos no acervo da Fonoteca Municipal do Porto.