Uma odisseia no espaço sónico - Parte I - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Uma odisseia no espaço sónico - Parte I

Rui Miguel Abreu

Percurso

22 Julho 2022

Viagem ao revolucionário ano de 1982 através da coleção da Fonoteca Municipal do Porto
Se há coisa tornada clara pelo recente fenómeno em torno de Running Up That Hill, o tema de 1985 de Kate Bush que ganhou nova vida através da popular série Stranger Things, é que nada viaja melhor no tempo do que a música e que o passado é tudo menos uma prisão inescapável. Há 40 anos, a música popular nas suas múltiplas declinações era bastante diferente, de facto, mas continha em si muitas sementes de um futuro que, entretanto, se tornou presente. E é precisamente a olhar para parte do acervo da Fonoteca Municipal do Porto – mais concretamente para alguns dos discos que foram lançados em 1982 e que constam da sua coleção – que vamos tentar compreender como é que esse particular momento da história gerou tanta música de elevada qualidade que se mostrou realmente capaz de se resguardar dos mais nefastos efeitos do tempo para chegar a 2022 com uma assinalável vitalidade. É importante perceber que a palavra inglesa para disco – record – significa, na verdade, registo ou arquivo, ou seja, um artefacto que é criado para, precisamente, resistir à passagem do tempo e guardar para o futuro as marcas do seu tempo.

1982 foi o ano em que Madonna lançou o seu single de estreia e também o ano em que foi editado o álbum mais vendido de sempre da História da música, Thriller, de Michael Jackson, o que já nos diz bastante do caráter especial dessa “colheita”. Mas muito mais aconteceu nesse particular ano da fase inicial dos hoje míticos Anos 80. De acordo com os registos da RIAA (Recording Industry Association of America), foram lançados perto de 2650 álbuns só nos Estados Unidos, facto que aponta para um ano globalmente profícuo. A grande revolução na música, no entanto, foi a chegada do MIDI. Esta sigla significa Musical Instruments Digital Interface e designa a tecnologia que permitiu que diferentes instrumentos eletrónicos pudessem começar a comunicar entre si – de repente, mercê de protocolos entre os diferentes fabricantes, todas as máquinas eletrónicas - sintetizadores, sequenciadores, caixas de ritmos, processadores de efeitos - poderiam trabalhar em conjunto, perfeitamente sincronizadas, eliminando muitas das dores de cabeça que os engenheiros de som eram obrigados a combater nos tempos analógicos. E a chegada do MIDI sentiu-se de forma intensa no mundo da música. Este é também o ano de imposição da síntese digital e apesar de em 1982 se estar ainda a um ano do lançamento de um dos mais populares sintetizadores de sempre – o famoso Yamaha DX7 –, esse foi o ano em que o sampler Emulator da E-mu, lançado no ano anterior, se viu de repente elevado à condição de ferramenta criativa indispensável em muitos dos grandes discos que marcaram esse ano.

Um dos maiores trabalhos de 1982, um álbum que ganhou estatuto mítico e que não há muito tempo ganhou uma esplendorosa reedição expandida que lhe cimentou o estatuto de clássico absoluto, foi 1999 de Prince. No álbum de temas como 1999, Let’s Pretend We’re Married ou da fabulosa Little Red Corvette, o génio púrpura de Minneapolis usou todos os recursos tecnológicos possíveis, incluindo a famosa Linn Drum lançada em 1980, a caixa de ritmos que ajudou a definir o som de toda uma época traduzindo na perfeição a vertigem de futuro que se vivia nesse tempo – não esquecer que 1982 foi o ano em que os grandes ecrãs assistiram à estreia de clássicos como Blade Runner, com música de Vangelis, Cat People, com banda sonora de Giorgio Moroder que incluía um tema título interpretado por David Bowie, ou E.T., o Extraterrestre.

Álbuns de Vanity 6 (Vanity 6) (este, claro, produzido por Prince), Grace Jones (Living My Life), A Taste of Honey (Ladies of the Eighties), Dionne Warwick (Heartbreaker), Empress (Empress) (que incluía mixes assinadas pelo mítico François Kevorkian) ou, por exemplo Chaka Khan (Echoes of an Era) eram sólidos sinais da criatividade presente nas diferentes facetas da música negra que, à época, tal como de resto hoje, estava na vanguarda da produção pop. Tirando a vénia ao passado aí protagonizada por Chaka Khan (ainda a dois anos do fabuloso I Feel For You que incluía o tema título escrito por Prince), todos os outros trabalhos apontavam para o futuro graças ao criativo uso do estúdio – caso notório o de Grace Jones, gravado nos famosos Compass Point Studios das Bahamas com alguns dos magos da modernidade Jamaicana como Robbie Shakespeare e Sly Dunbar - e ao generoso uso das mais modernas ferramentas, como os sintetizadores OBX da Oberheim (usado, por exemplo, no registo de Empress).

Do lado de cá do oceano, a pop também avançava a vigorosos saltos impulsionados pela tecnologia, com o fenómeno Synth Pop a varrer as tabelas de vendas e a gerar uma série de incontornáveis clássicos incluindo, pois claro, A Broken Frame dos Depeche Mode. Este foi o álbum em que Martin Gore, David Gahan e Andrew Fletcher tiveram que lidar com a saída de Vince Clarke, um dos definitivos arquitetos do synth pop que logo formou os Yazoo (que nesse ano lançaram também a pérola Upstair’s At Eric’s) e, mais tarde, os Erasure. Mas, sob o comando do fundador da Mute Records Daniel Miller, um apaixonado por tecnologia, e com generoso recurso a “brinquedos” como o ARP 2600, Korg KR-55 ou TR-808 da Roland, o remanescente trio mostrou logo ao segundo e normalmente difícil registo que tinha arcaboiço para se atirar ao futuro.

Outros trabalhos de A Flock of Seagulls (A Flock of Seagulls), Duran Duran (Rio) e Classix Nouveaux (La Verité) contribuíram também de forma decisiva para o domínio “sintetizado” dos tops de vendas, habituando toda uma geração aos sons eletrónicos, ritmicamente vincados de uma pop que aí se projetava no futuro. Não é coincidência, pois claro, que um dos maiores fenómenos pop dos nossos dias, The Weeknd, tanta inspiração recolha nesta época e sonoridade.

No acervo da Fonoteca Municipal do Porto há vários outros trabalhos lançados em 1982 que se posicionaram bem face à história. Do lado dos “pesos pesados”, aqueles nomes que enchiam as mais cobiçadas páginas da imprensa da época e que, com diferentes graus de veterania, possuíam carreiras de inegável sucesso ancoradas em basta experiência, é impossível não destacar (e, perdoem, mas não há mesmo outra palavra para designar discos destes, pelo que irá sendo por aqui repetida) clássicos como Eye in the Sky do Alan Parsons Project, Peter Gabriel de Peter Gabriel, Mirage dos Fleetwood Mac, Five Miles Out de Mike Oldfield, Gold dos Steely Dan e Hot Space dos Queen. Cada um destes discos – gravados com orçamentos consideráveis nalguns dos mais avançados estúdios do planeta – beneficiou das revoluções tecnológicas então disponíveis, sobretudo ao nível das multipistas, tornando os estúdios ferramentas por excelência de experimentação nos domínios da pop. Esta foi, de facto, a Alvorada da Gravação Digital e os nomes da música com bolsos mais fundos puderam experimentar novas ideias que bastas vezes se traduziram em enormes êxitos de vendas, como os exemplos acima mencionados bem atestam.

Mas a música que saiu da revolução DIY do punk enunciada meia dúzia de anos antes e depois cristalizada na cena new wave, talvez menos interessada com o rigor tecnológico, mas ainda assim definitivamente investida na procura de outras ideias e sonoridades, também gerou generosa descendência em 1982, com vários desses casos a terem lugar no vasto acervo da Fonoteca Municipal do Porto. A saber:

Siouxsie And The Banshees ‎– A Kiss In The Dreamhouse
Joe Jackson ‎– Night And Day

Desta colheita de 1982 não se pode deixar ainda de destacar uma série de títulos que apontava para o futuro mais particular das pistas de dança: estes foram os tempos dos últimos arrepios do disco sound, da imposição da visão europeia da dança com o italo disco e da experimentação na frente mais rítmica com caixas de ritmos e métodos de produção inovadores e bastante eletrónicos. Daí saiu muita música que ainda hoje tem lugar nas malas dos DJs menos comprometidos com a vertigem do presente e mais interessados em usar o melhor da história passada. Na coleção da Fonoteca constam preciosidades criadas por mentes altamente avançadas como Patrick Cowley, Leroy Burgess ou Tom Moulton, todos eles nomes fundamentais da história mais dançante da música cujos nomes podem ser encontrados nos créditos de alguns destes clássicos:
 

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