Rancho Folclórico (da Casa do Povo) do Paul - Fonoteca Municipal do Porto

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Rancho Folclórico (da Casa do Povo) do Paul

Teresa Campos

Percurso

31 Dezembro 2021

O dinamismo e as manifestações do coletivo no folclore
Na década de 80, e a propósito das celebrações dos 50 anos do Rancho, Leonor Narciso, António Valezim e José Adriano, decidem juntar cantares de diferentes contextos e com diferentes funções, e gravar um vinil singular, com o entendimento de que o folclore pode e deve ter uma função mais profunda. Por isso nos deparamos com uma amostra de repertório diverso, que conta com os Zabumbas (Zés-Pereiras), nove cantigas de roda, quatro cantos de trabalho e dois de romaria: o folclore surge para acompanhar os ciclos coletivos, e tanto quanto possível, deve continuar a servir esse propósito. Foi gravado em 1988, num só dia, por um grupo de gente de duas gerações, no sítio que hoje é Assembleia Municipal, e que era na altura o Teatro-Cine da Covilhã.

Estamos na Cova da Beira, na vertente sul da Serra da Estrela e na margem esquerda da ribeira da Caia. Em 1938, o Paul foi uma das aldeias que participou no concurso A aldeia mais portuguesa de Portugal, um evento organizado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, em que se procurava a aldeia do território continental que “maior resistência oferecia a decomposições e influências estranhas e apresentasse o mais elevado estado de conservação no mais elevado grau de pureza numa série de caraterísticas”. Ficou em segundo lugar, com Monsanto em primeiro - curiosamente ambas do distrito de Castelo Branco - e foi nesse ano e com vista a essa candidatura que, impulsionado pelo professor Luís Fonseca e pelo senhor José Pereira da Rocha, foi fundado o Rancho Folclórico do Paul. Nessa altura era uma pequena aldeia, dedicada quase exclusivamente à agricultura tradicional de terrenos próprios e de pequena dimensão ou, em grupo, de terras de famílias mais abastadas. Uma terra que girava em torno do calendário agrícola e onde sempre se cantou. Os cantares eram, aliás, uma realidade indissociável das dinâmicas coletivas.

Nos anos 60 começaram os anos duros. Com a política industrial de Salazar, acabaram as pequenas produções e os cerca de 60 teares manuais com que se faziam as mantas de ourelos foram comprados pelo Estado. Com o fluxo migratório sobretudo para França, com a Guerra Colonial a recrutar os jovens, a chegada das máquinas agrícolas e a abertura de portas à pequena indústria, comércio e serviços, ficaram apenas os mais velhos para trabalhar as terras. Como reflexo disso, constata José Luís Adriano no livro Paul e seus cantares - o dinamismo e as manifestações do colectivo, diminuem “as manifestações populares nos largos da aldeia, os bailes de roda, os jogos coletivos, deixam de se ouvir os cantos de trabalho, e perde-se a tradição de frequentar as romarias da região, grandes jornadas de revitalização e rememorização cultural”. Só as manifestações religiosas se preservam quase inalteráveis, mas as manifestações do coletivo foram profundamente abaladas. O Rancho não foi exceção. Vinha desde 1965 a ser dirigido por um casal - José Geraldes Alves e dona Maria dos Prazeres - apoiados musicalmente por Joaquim Ramos Sardinha, “ainda hoje considerado o melhor acordeonista da história do rancho”, e pela “contagiante Tia Adília, adufeira com quem aprenderam todas as demais”, e em meados da década de 70 começou a dissolver-se.

Em 1977, embalados pelo 25 de abril, Leonor Narciso, António Valezim e Júlio Rosário decidem reavivar o Rancho, falam com a direção da Casa do Povo - Alfredo Sardinha, padre Curto, Luís Carvalho e José Ramos - e conseguem comprar a casa que viria a ser a Casa do Povo do Paul. O Rancho passa a chamar-se Rancho Folclórico da Casa do Povo do Paul e ganha uma nova vida. Queriam regressar às origens das origens, conscientes de que, apesar dos modelos de representação da cultura impostos pelo Estado Novo, as formas de manifestação coletivas “eram, na sua essência, a expressão natural e espontânea do povo”, e que agora seriam “porventura, mais a expressão da dinâmica das instituições sócio-culturais locais (...) gerando-se deste modo, uma nova conceção de manifestações coletivas, mais organizadas e programadas”.

Criam uma escola para colmatar a falta de ferramentas e oportunidades da população mais jovem e, durante uma década, por iniciativa e necessidade próprias, fazem recolhas de trajes representativos de como se vestia no Paul para substituir os que vinham das encenações de 1938, recolhas de cantares por informantes que foram sendo identificados como fidedignos, e investigações sobre os ciclos e calendários agrícolas, sobre as festividades e romarias, sobre a importância do canto na reinvenção do coletivo popular.

Não é por acaso que nos deparamos com a intrigante capa da adufeira ou, quando ouvimos o vinil, com a evidente necessidade de experimentar devolver à sonoridade que associamos ao rancho, o contexto em que ele surge: o canto a cappella e os adufes, registados em várias recolhas de musicólogos como Armando Leça, Rodney Gallop, António Joyce, e mais tarde Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti. Não é também por acaso que os Zabumbas abrem a caminhada, em representação de um dos mais antigos grupos de bombos e caixas do distrito de Castelo Branco que existe no Paul desde 1938. Os bombos eram tocados em festas e romarias do calendário litúrgico, sem prática de dança associada. Davam a volta à capela e depois armavam-se bailes onde se dançava. No vinil, também seguimos para um dos dois únicos viras dançados no Paul. Depois disso, entramos nos cantos de trabalho, com um canto lento e típico da região - O milho da nossa terra - que acompanhava o movimento arrastado e violento da enxada no sachar do milho pelas mulheres; a Tecedeira Briosa, que acompanhava as mulheres enquanto enchiam as canelas dos fios ao som do batimento dos teares; o Bate Lavadeira que nos fala da ribeira de Caia e do movimento lento de quem lava a roupa na própria pedra; e As Vindimas, cantadas em muitas regiões, trabalhadas por Lopes-Graça e cantadas pelo Luís Represas e pela Né Ladeiras. As danças de roda são várias e animam os bailes das tardes de domingo e dos dias de festa. São dançadas em círculo, com poucos saltos e passos simples, feitas para serem dançadas por toda a gente. De todas, saliente-se a Farrapeira, muito cantada no Douro e com um movimento de pés muito parecido ao dos viras. Talvez seja a dança mais complexa em termos coreográficos e, hoje em dia, os adufes são tocados por quem dança. O São João é provavelmente o único tema do Paul com duas partes, e um dos dois cantos de romaria cantados no São João que se conhecem, normalmente cantado a cappella e sem ritmo, ao qual se juntou um adufe. A fechar o disco, a Senhora das Dores, que apesar de não ser a padroeira (Senhora da Anunciação) é a festa anual mais forte da região. É um vinil que marca uma posição clara.

Desde então, em termos performativos, para além de se apresentarem muitas vezes com os Zabumbas, continuam interessados em divulgar o contexto e a função do repertório que representam, em questionar o formato dos eventos e em estimular o público que os recebe. Começaram a teatralizar cenas da vida da aldeia em palco, convertendo as suas apresentações em festivais em representações etnográficas que acompanham ou refletem ciclos do ano - o Natal, Entrudo, Quaresma e a Páscoa, as atividades agrícolas, o São João e outras romarias - e o que é certo é que o Rancho se começou a afirmar a nível nacional, marcou presença nos maiores festivais que se realizaram em Portugal, foi representar Portugal na Holanda no primeiro festival mundial do CIOFF da UNESCO e foi recebido duas vezes por Henri Coursaget no Confolens, o maior festival de cultura popular da Europa.

Em 2002, a propósito do lançamento do livro Paul e seus cantares - o dinamismo e as manifestações do colectivo os mesmos três - José Luís Adriano, Leonor Narciso e António Valezim - com o apoio da Casa do Povo do Paul, selecionam 60 temas, e decidem lançar um triplo-albúm organizado em três categorias - cantares de roda, cantares de trabalho e cantares religiosos - a que chamam Chão do canto.

“No futuro, alguém há-de vir”, disseram-me antes de sair. E seguramente virá. É um trabalho brilhante.

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