Os álbuns VU e Another View dos Velvet Underground - Fonoteca Municipal do Porto

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Os álbuns VU e Another View dos Velvet Underground

Richie Unterberger

Percurso

11 Novembro 2022

Entre 1967 e 1970, enquanto Lou Reed fazia parte da banda, os Velvet Underground lançaram quatro álbuns. Cada um deles é uma declaração importante e cada um deles é totalmente diferente dos outros. Se o grupo apenas tivesse produzido estes quatro álbuns, o seu lugar como uma das bandas rock de maior êxito estaria assegurado. Mas os Velvet também gravaram uma série de outras músicas em estúdio, sendo muitas delas quase tão boas como o que foi lançado enquanto estiveram ativos e algumas delas estando ao mesmo nível.
 
As melhores dessas gravações não publicadas, em conjunto com algum material que claramente não estava à altura dos habituais padrões de qualidade do grupo, surgiram nas compilações de arquivo lançadas em meados dos anos 1980: VU e Another ViewVU é um complemento especialmente importante para a discografia da banda, incluindo muito do que seria, provavelmente, parte de um quarto álbum “em falta” entre The Velvet Underground de 1969 e Loaded de 1970. Another View, por vezes escrito Another VU, é sobretudo uma compilação de todas e quaisquer sobras encontradas, embora se destaquem alguns pontos altos.
 
Muito do material de VU já circulava de forma não-oficial em LPs pirata antes de ser lançado em fevereiro de 1985. Na altura em que começaram a circular gravações-pirata dos Velvet Underground nos anos 1970, a hipótese de uma edição dessas gravações oficialmente aprovada pela banda era não só improvável como absurda. Os álbuns do grupo não tinham tido grande sucesso comercial aquando do seu lançamento oficial e no início dos anos 1970 alguns dos seus discos eram vendidos por uma ninharia em áreas reservadas a pechinchas. A editora discográfica MGM, que tinha lançado os seus três primeiros LPs, e outras que posteriormente adquiriram os direitos sobre esses trabalhos, pensavam obviamente que o interesse pelos Velvet Underground acabaria por desaparecer.

Em vez disso, o culto entusiástico da banda não parou de crescer. A mera existência de álbuns-pirata, normalmente reservada a superbandas como os Beatles e Led Zeppelin, comprovava a intensidade da devoção dos fãs. À medida que um cada vez maior número de bandas punk e new wave citavam os Velvet como influência seminal e ocasionalmente apresentava covers das suas músicas em discos ou em concertos (como fez Patti Smith), a indústria da música percebeu que ainda podia ganhar dinheiro com o catálogo dos Velvet Underground.
 
VU foi a primeira das grandes explorações feitas ao material não editado dos Velvet Underground e talvez a de maior sucesso comercial. Chegou ao 85º lugar nas tabelas de vendas dos EUA, posição bem mais elevada do que qualquer um dos seus álbuns tinha alcançado enquanto a banda estava no ativo: o seu mais bem sucedido LP (The Velvet Underground & Nico) apenas tinha atingido a posição 171 nas tabelas. Igualmente importante é o facto de VU ter chamado a atenção de uma nova geração de ouvintes para o prolífico legado dos Velvet Underground, garantindo que os quatro discos de estúdio da banda nunca mais tenham esgotado.

Contudo, mais importante do que o sucesso comercial, é a própria música contida em VU. Oito das dez canções foram retiradas de sessões de 1969 feitas entre o terceiro e o quarto álbum. As duas restantes resultaram de uma espécie de single de 1968 não editado e gravado entre o segundo e o terceiro LPs. Ainda que Another View viesse a ser o título da seguinte compilação de material gravado, estas dez faixas deram-nos realmente uma “outra visão” (another view) dos Velvet Underground que não aquela que é possível ouvir nos seus três primeiros álbuns.
 
Na sua maioria, as canções e a atuação têm uma abordagem mais ligeira, até divertida, do que acontecia com as mais sérias e abrasivas que ouvimos em The Velvet Underground & Nico, de 1967, de longe o seu mais célebre LP; ou em White Light/White Heat de 1968, seguramente o seu álbum mais ruidoso e agressivo; ou ainda em The Velvet Underground, de 1969, o mais calmo e folk, se bem que as letras sejam tão complexas e introspetivas como nos seus trabalhos anteriores. Os Velvet Underground continuam a ser sobretudo conhecidos pelas suas criações mais controversas e perturbantes, especialmente aquelas que exploram temas anteriormente tabu como as drogas duras e os comportamentos sexuais não convencionais, ou que exploram longas massas sonoras dissonantes vanguardistas e distorção eletrónica. No entanto, a sua música tinha também canções animadas e apelativas, celebrações de prazer, paixão e rock’n’roll, como demonstra muito do conteúdo da compilação VU.
 
Muito dessa sensação de “boa onda” é bastante audível numa das duas gravações de 1968, Temptation Inside Your Heart. Aqui os Velvet parecem tentar a cena da música soul, ainda que não consigam evitar que a sua ambiguidade se infiltre. Por exemplo, não há assim tantas canções soul que se atrevam com versos como I know where the evil lies inside of your heart (Eu sei onde está o diabo no teu coração). Ou, já agora, tendo sido deixado o microfone a gravar, ouvem-se vozes a murmurar electricity comes from other planets (a eletricidade vem de outros planetas) ou comparar o que estavam a tentar fazer com o que faziam Martha & the Vandellas na Motown; tudo isto completado com harmonias soul em alto registo nada caraterísticas deles, o que quase os levava a rebentar de riso.
 
Também nessa gravação de fevereiro de 1968 consta a deliciosa balada Stephanie Says, agraciada com a celestial viola de John Cale, tocada com a mesma perícia que ele consegue nas longas massas sonoras arranhadas que arranca ao seu instrumento, por exemplo em Venus in Furs. É possível que a Verve (subsidiária da MGM) quisesse de algum modo persuadir a banda a editar um single comercial com estas duas canções, sendo a mais polida, Stephanie Says, a melhor candidata. O facto de não ter sido editada em 1968 é totalmente inexplicável, pois apesar de ser apelativa, encobre o típico retrato ambíguo de Reed como um globetrotter que enfrenta a morte com bravura.
 
Esta música antecipa, também, algumas futuras composições de Lou Reed cujos títulos agregam um nome de mulher a says (diz), como Candy Says e Caroline Says. Na mesma linha está Lisa Says, de VU, resultante das sessões que teriam formado o núcleo do álbum em falta de 1969. Esta sentida balada romântica de Reed é provavelmente o ponto alto de VU, ainda que não seja tão boa como a versão ao vivo que se ouve no duplo LP Velvet Underground Live (gravado em finais de 1969, mas só lançado em 1974). Esta versão ao vivo tem uma animada segunda ponte que não se ouve na faixa de estúdio, e o facto de não ter sido recuperada nas sessões de Loaded é um mistério.

Ocean rivaliza com Lisa Says como melhor faixa de VU, e é decerto a mais séria, Reed e o resto da banda invocando nela um quase estado de hipnose meditativa. As partes calmas contrastam com o vaivém de crescendos, que sobem e descem como se fossem ondas no mar. Isto seria de novo tentado nas sessões de Loaded em 1970, sendo mais uma vez um enigma que não tenha sido incluída nesse LP.
 
Na restante meia dúzia de faixas das sessões de 1969 incluídas em VU encontramos os Velvet surpreendentemente bem-dispostos, o que reflete talvez o desejo de se virarem para um som mais orientado para o rock e mais comercial, depois de cerca de três anos sem conseguirem um álbum de sucesso. As faixas não estão ao nível das melhores de Reed, mas todas têm o seu charme. I Can’t Stand It é uma “rockalhada” e ao mesmo tempo um veículo para o mais estranho humor de Lou, que sofre todo o tipo de indignidades enquanto chora o seu amor perdido. Foggy Notion não é muito mais do que uma música de riffs oscilantes com uma letra atraente mas absurda, em parte inspirada por um obscuro lado B de um single dos primórdios do rock’n’roll, de meados dos anos 1950, gravado pelo grupo vocal The Solitaires.

Menos impressionantes mas contudo agradáveis são: She’s My Best Friend, uma ode em ritmo invulgarmente ligeiro e simples; One of These Days, tema caprichosamente melancólico que nos mostra uns Velvet mais blues do que nunca; e Andy’s Chest, música quase cómica com um toque de vaudeville, que Lou Reed explicou posteriormente como sendo o que ele pensava sobre o disparo quase fatal contra Andy Wahrol em 1968. A baterista Maureen Tucker tem uma rara prestação vocal na ainda mais vaudevilliana I’m Sticking with You, que bem poderia ter sido usada num western musical do século XIX passado num saloon. O que de certo modo a situa no mesmo estilo da única canção dos quatro principais álbuns dos Velvet Underground em que Tucker é a voz principal, After Hours, embora After Hours seja melhor.
 
Ainda que alguns críticos e fãs tenham criticado a coletânea por achar que as misturas estavam muito orientadas para o som dos anos 1980, VU é uma mais-valia a acrescentar aos álbuns de estúdio. É mais ligeiro e menos provocador do que qualquer um daqueles discos, mas ouve-se com agrado do princípio ao fim. Stephanie Says, Lisa Says e Ocean são tão artísticas como qualquer outra faixa da banda no seu melhor. Metade das músicas seriam refeitas por Lou Reed para os seus álbuns a solo, mas, em todos os casos, as versões dos Velvet Underground são melhores e mais rock.
 
No entanto, não se trata exatamente do quarto álbum “em falta” entre The Velvet Underground e Loaded, e não é só porque duas das faixas datam de entre o segundo e o terceiro LP. Foram ainda recuperadas outras gravações de 1969 para a compilação de 1986 Another View, que provavelmente foi viabilizada graças ao relativo sucesso comercial de VU. Do álbum constam ainda outras gravações, algumas das quais recuam até finais de 1967. Contudo Another View não é tão significativo quanto VU, sendo antes uma amálgama aleatória resultante de buscas nos arquivos.

Há, apesar disso, faixas robustas que qualquer fã dos Velvet Underground há de querer ouvir. A melhor é, logo a abrir, a roqueira e incentivante We’re Gonna Have a Real Good Time Together, que de acordo com um artigo saído na Distant Drummer em 1969 terá sido considerada para um single a editar nesse ano, o que não veio a acontecer. Básica, mas extremamente alegre, há muito que estava disponível uma versão ao vivo no 1969: Velvet Underground Live, versão essa que supera a de estúdio com a sua pura energia frenética. A outra das melhores faixas em Another View é uma versão de estúdio de 1969 de Rock and Roll; mas também neste caso é superada tanto pela que aparece em 1969: Velvet Underground Live como pela versão gravada em 1970 para Loaded.
 
Muito do que foi descoberto para Another View estava inacabado, e muitas vezes percebe-se porque não foi editado na altura ou escolhido para VU. A convincente rockalhada Guess I’m Falling in Love, I’m Gonna Move Right In (que não é muito mais do que um riff repetitivo) e a inócua Ride into the Sun nem sequer têm vocais, ainda que haja versões de todas elas cantadas.

A completar o álbum, duas versões de Hey Mr. Rain estão entre as mais (e poucas) músicas monótonas do repertório dos Velvet. Coney Island Steeplechase demonstra o por vezes lamentável gosto de Reed por melodias vaudeville. Até certo ponto, o mesmo acontece com a estranha Ferryboat Bill, com a sua melodia insistente e circular, baseada num trocadilho forçado acerca de um anão.

Há muitos fãs dos Velvet Underground que querem ouvir absolutamente tudo o que haja da banda, e hão de estimar, ou pelo menos querer ter Another View. Contudo, VU é uma mais feliz descoberta de material dos seus arquivos e uma das raras compilações de material não editado que se articula como uma experiência musical consistente e agradável. Estas músicas foram, mais tarde, reeditadas como faixas bónus em edições de luxo de White Light/White Heat e de The Velvet Underground. Mas para os fãs mais exigentes VU ainda é a melhor iniciação ao material não incluído nos álbuns de 1967 a 1970, assim como documenta a face mais acessível e rock’n’roll desta magnífica banda.
 
Richie Unterberger é o autor de White Light/White Heat: The Velvet Underground Day-By-Day.

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