Orfeu - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Orfeu

Leonor Losa

Percurso

14 Outubro 2022

Uma visão geral
A fonografia em Portugal seguiu até aos anos 50 um modelo de desenvolvimento assente numa economia de mercado. Com isto, pretendo reforçar que até aí não se desenvolveu no país uma indústria fonográfica como em grande parte dos países ocidentais e não ocidentais. A inexistência de infraestruturas de fabrico e produção de discos até muito tarde no século XX, bem como as condições precárias de gravação (decorrentes da inexistência de estúdios construídos para esse efeito), colocaram Portugal, do ponto de vista da produção da música gravada, numa situação de dependência face a estruturas e companhias estrangeiras. Do mesmo modo, o aparente desinteresse do Estado neste setor de produção musical, poderá tê-lo remetido para as franjas do controlo político, uma hipótese que não se encontra totalmente sustentada. Mas o que é certo é que, durante mais de meio século, a música gravada se constituiu como um sub-produto de outros sistemas de produção musical (nomeadamente o teatro de revista e, a partir dos anos 30, a rádio e a televisão), não se autonomizando enquanto indústria produtora de mercadorias musical, criativa e estilisticamente diferenciadas desses contextos e infraestruturas hegemónicas.

É no cenário de parca industrialização geral, no seio de uma sociedade com profundas desigualdades culturais, demográficas e económicas entre os principais meios urbanos e os contextos rurais, e de ausência de infraestruturas de produção musical, que Arnaldo Trindade, um jovem filho de um comerciante abastado do Porto, se começa a interessar pela gravação no início dos anos 50. A criação da Orfeu é, pois, o resultado da relação entre a ação individual e as forças históricas e culturais em que tomou lugar.
 
Nascido em 1934, Arnaldo Trindade foi obrigado a abandonar os estudos aos 18 anos para assumir funções na empresa de comercialização e distribuição de eletrodomésticos do pai, situada na rua de Santa Catarina. 
 
As redes de amizade e sociabilidade em que Arnaldo Trindade se movimentou no Porto durante os anos da adolescência e entrada na idade adulta, atravessam o universo de intelectualidade da cidade, das suas instituições, dos contextos de sociabilidade e das redes informais de influência. É neste contexto cultural de entusiasmo artístico, intelectual e criativo que Arnaldo Trindade toma a iniciativa pessoal de gravar música e poesia, inicialmente enquanto atividade artística mais do que economicamente orientada.
 
Tendo adquirido, numa das suas viagens a New Jersey, uma máquina de gravação de discos AMPEX (de 4 pistas), Arnaldo Trindade, então com 22 anos e por forte sugestão do escritor Óscar Lopes, seu professor, propõe ao poeta Miguel Torga a gravação de um disco. Arnado Trindade recorda o contacto com Miguel Torga:
 
Arnaldo: A nossa conversa [entre ele o Miguel Torga] foi muito interessante, porque eu comecei-lhe a dizer(...) “Está a ver como era estar aqui a ouvir o Fernando Pessoa ou o Sá Carneiro, ou, sei lá, o António Nobre?”. O que era é que ele começou a pensar, e eu vi logo que aquela cabeça… é a eternidade, não há dúvida nenhuma. Os escritores, os artistas, o que querem é a eternidade. Isto aqui é uma passagem leve, queria ficar. (...) ele viu a modernidade do sistema novo que era o disco, que exatamente podia ouvir a voz dele através dos tempos. Ele viu logo isso, compreendeu logo isso.
 
Nesta primeira fase, a atividade de gravação caracterizava-se sobretudo pela intimidade com os circuitos de produção cultural da cidade do Porto com quem Arnaldo Trindade privava, nomeadamente as atividades e personalidades que gravitavam ao redor do Teatro Experimental do Porto, companhia teatral criada em 1950 e dirigida por António Pedro entre 1953 e 1962; e do círculo de intelectuais ativo na publicação Notícias do Bloqueio, uma série de fascículos de poesia editada no Porto entre 1957 e 1961 dedicada à poesia de caráter socialmente engajada. Além de outros poetas, a série de discos de poesia da Orfeu compreendeu discos de poetas desse grupo como Egito Gonçalves, Papiniano Carlos (também colaborando enquanto ator no TEP), Luís Veiga Leitão, Daniel Filipe, ou o próprio Miguel Torga. A intimidade com a estrutura do Teatro Experimental ficou sobretudo patente na série de discos designada Antologia da Poesia Portuguesa gravação de discos de poesia de poetas desaparecidos ditos por atores dessa companhia teatral, como Jaime Valverde a dizer Fernando Pessoa; Vasco Lima Couto a dizer António Nobre; João Guedes a dizer Mário de Sá Carneiro; Dalila Rocha a dizer Florbela Espanca; ou, mais tarde, Mário Viegas dizendo vários poetas entre os quais Daniel Filipe ou Eugénio de Andrade.
 
Do mesmo modo, a edição de música pautou-se no período inicial, pelos circuitos da cidade, tendo sido os discos de estreia os do conjunto do vibrafonista Walter Behrende do acordeonista Heinz Worner, um dos primeiros conjuntos a protagonizar a aproximação as sonoridades do rock’n’roll e aos ritmos de dança que se banalizaram nos anos 60 nas sociabilidades de jovens e estudantes.

Paralelamente às sonoridades urbanas e cosmopolitas dos conjuntos, a etiqueta Orfeu publicou discos de agrupamentos cujos reportórios se localizavam nas representações da música popular rural ou tradicional, tanto ranchos folclóricos, como “conjuntos típicos”. No centro deste reportório encontrava-se o Conjunto António Mafra, um agrupamento criado para a encenação da peça teatral Morgado de Fafe Amoroso, de Camilo de Castelo Branco, que esteve em cena no TEP em 1958, sob encenação de António Pedro.
 
Contudo, ainda na década de 50, o cantor da tradição coimbrã, Adriano Correia de Oliveira, edita pela Orfeu o seu primeiro fonograma, e assume junto do editor o papel de mediação de outros músicos daquela tradição num momento de renovação da canção de Coimbra e de surgimento de termos como balada ou trova para designar o reportório menos ortodoxo e de teor socialmente engajado (ainda que muito timidamente). Pela influência de Adriano, Arnaldo Trindade vem a gravar vários músicos do contexto universitário coimbrão, nomeadamente José Afonso com quem estabeleceu um contrato de trabalho inovador no contexto da indústria da música do período.

Até então ausentes de expressão mediática e apenas com existência local, as novas estéticas da canção que emergiam no contexto crescentemente contestatário às políticas do Estado Novo estudantil conheceram as condições para disseminação mediática. A criação de condições materiais para a gravação destes músicos até então ausentes do espetro mediático, contribuiu para a emergência de novos estilos da música popular que competiam com aqueles promovidos pela política cultural do Estado Novo, e que viriam a ter um papel determinante no desenvolvimento e redefinição de novos regimes discursivos ao redor das noções de música popular e cultura popular.
 
Paralelamente, a vocação comercial da editora vinha-se intensificando. Adotando os conhecimentos e formas de ação comerciais que conhecia da atividade de distribuidor de eletrodomésticos, Arnaldo Trindade reforçou a equipa de consultores e a editora passou a assumir uma atitude conscientemente incisiva no panorama discográfico português.
 
A afirmação simbólica da editora no universo da produção discográfica no país deu-se sobretudo através da organização de um evento de âmbito internacional. Entre 30 de novembro de 1 de dezembro de 1969 realizou-se em Ofir, no moderno Hotel do Pinhal, a Convenção do Disco. Organizada pela Orfeu e inspirada nas grandes convenções comerciais de outras indústrias, em particular as de eletrodomésticos de que Arnaldo Trindade era íntimo, este evento reuniu cerca de 400 pessoas da indústria e da imprensa. A Convenção tinha como objetivo a promoção dos intérpretes da Orfeu e das etiquetas e editoras internacionais que representava e distribuía no país, como Pye Records (Inglaterra), Durium (Itália), Vogue (França), Island (Jamaica), entre outras, editoras cujos reportórios desempenharam um importante papel na abertura de Portugal a novas sonoridades de vanguarda. Direcionada sobretudo para a imprensa, que lhe daria grande destaque nacional e internacionalmente, a Convenção constituiu um momento de forte inovação do mercado nacional de discos e veio afirmar a Orfeu como editora concorrente daquelas que estavam ativas há mais tempo no país.
A imprensa acabaria por dar um grande destaque ao evento, tendo publicado reações nos principais periódicos generalistas nacionais e nos internacionais da especialidade, como a Billboard, que focou a orientação do mercado Português para o formato EP. Entre outros, no contexto nacional, a jornalista Vera Lagoa haveria de dar um destaque de duas páginas descrevendo de modo detalhado o evento no jornal Diário Popular. Simbolicamente, a Convenção haveria de marcar a transição da Orfeu de uma estrutura de pequenas dimensões, para uma empresa de grande impacto comercial no país.
 

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