04 Dezembro 2020
Fonoteca Municipal do PortoFMP
É nas planícies do Baixo Alentejo, no distrito de Beja, que encontramos uma das expressões musicais mais singulares do país, o Cante Alentejano. As canções, ou modas, entoadas a duas vozes sem qualquer instrumento a acompanhar, eram ensinadas entre gerações enquanto acompanhavam as principais atividades do campo.
Numa altura em que o trabalho agrícola era feito exclusivamente pela força dos braços de homens e mulheres, as modas cantadas em grupo eram o motor que marcava o ritmo da lavoura. O grupos eram tipicamente formados por vozes femininas ou masculinas, já que o trabalho era muitas vezes assim dividido. No entanto, o EP Cantares do Alentejo gravado pelo Grupo Folclórico de Peroguarda e editado pela Rapsódia em 1959, surge como uma exceção a esta norma. Olha a laranja do meu quintal, que inicia o lado B, destaca-se pela dinâmica cativante criada entre os diferentes solistas.
Seja o Cante de Peroguarda, Serpa ou Castro Verde, a organização mantém-se inalterável: um coro e dois solistas, o ponto e o alto, o que não significa que uma interpretação da mesma moda se repita duas vezes. O ponto que inicia a canção e o alto que ouvimos em simultâneo com o coro, têm a oportunidade enquanto solistas para interpretar a música à sua maneira, com mais ou menos voltas à melodia, mais contida ou mais expressiva.
Adeus ò linda ceifeira, interpretada pelo Rancho dos Ceifeiros de Entradas no EP Alentejo 2, é uma ode à dura vida de quem trabalha no campo. A moda tem pouco mais de dois minutos, mas a riqueza da linha do alto, a profundidade do ponto e a coesão do coro, transmitem em cada verso uma beleza melancólica rara, tornando o registo numa referência musical.
Cantando se passa a vida
Não vale a pena chorar
Quem leva a vida cantando
Não lhe custa trabalhar
Enquanto os pormenores de cada interpretação recaem principalmente sobre os solistas, o caráter geral da moda varia conforme a região do Alentejo em que a ouvimos. Ainda que cada grupo possua a sua própria sonoridade, não podemos deixar de notar a importância que o Guadiana teve na música. A separação geográfica imposta pelo rio não só fez com que cada margem cantasse as modas próprias da sua zona, como marcou estilisticamente a maneira como eram cantadas.
Quando ouvimos as gravações da moda Lírio roxo pelos grupos corais de Serpa e Pias, o andamento ligeiro e leve típico da margem esquerda contrasta com os registos mais lentos e mais ornamentados dos grupos corais de Figueira de Cavaleiros e Ferreira do Alentejo, típicos da margem direita do rio Guadiana. Estas caraterísticas regionais não só enriquecem o Cante, como permitem que cada grupo mantenha a sua sonoridade com o passar do tempo, independentemente da pessoa que as canta.
Com a evolução das técnicas agrícolas, deixou de se ouvir o Cante Alentejano a acompanhar o trabalho rural e este passou a ser cantado não só em momentos de convívio e partilha pelos grupos corais e etnográficos do Baixo Alentejo, mas também por quem o quisesse cantar.
Extravagante mostra-nos como uma moda se pode adaptar a diferentes contextos, sem perder as suas origens. No EP do Grupo Coral Os Vindimadores da Vidigueira, editado pela Alvorada em 1967, ouvimos uma versão da moda tal como manda a tradição, onde o coro e os solistas relatam um desencontro amoroso. Esta canção tinha já sido gravada em 1965 pelo Trio Guadiana, grupo formado pelos alentejanos José Dias, Hilário Tomar e Francisco Santos, cujo trabalho de adaptação das modas às suas vozes e a instrumentos como o cavaquinho ou a viola, teve um papel importante na divulgação da música alentejana.
Mais tarde, em 1983, também Janita Salomé viria a gravar a sua versão, com um arranjo escrito em conjunto com Pedro Caldeira Cabral. A melodia ornamentada do alaúde e as percussões que marcam o início desta gravação não nos remetem de imediato para a canção que ouvimos anteriormente, mas a voz de Janita Salomé rapidamente nos envolve nas particularidades do Cante, criando uma combinação de sonoridades surpreendente.
Chegamos aos dias de hoje e Chamaste-me Extravagante volta a aparecer com uma nova roupagem, agora nas vozes e instrumentos de Magano, projeto formado por Francisco Brito e pelos irmãos Sofia e Nuno Ramos. Ainda que o caráter da canção seja bastante diferente do registo dos Vindimadores da Vidigueira, a melodia e os versos originais mantêm a essência da cantiga popular.
Projetos como este, assim como o trabalho desenvolvido nas escolas dos municípios de Serpa e Castro Verde, onde já se ensinam as modas e tradições do cante, permitem que a cultura popular da região permaneça viva e seja transmitida às gerações mais novas.
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