O Adufe entre o passado e o futuro - Fonoteca Municipal do Porto

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O Adufe entre o passado e o futuro

 Ana Bárbara Trabulo

Percurso

16 Dezembro 2022

Diz-se que o adufe é um instrumento intrínseco à mulher. E porque será? Como apoio a esta afirmação podem perfilar-se diversos argumentos.

Dizem que a primeira vez que ouvimos, estamos ainda no ventre da mãe, que tal acontece por volta dos cinco meses. A primeira impressão sensorial no ser humano parece começar na vigésima semana de gestação, sabendo-se que o feto reconhece todos os sons, iniciando uma aprendizagem musical nessa altura (Areias, José Carlos, 2016). Talvez por isso, as pequenas percussões e a voz sejam sempre associadas à mulher, à mãe, ao divino, à terra e à vida. E assim se assume a ligação da mulher ao frame drum, ao bater do coração, ao pulsar do sangue.

Além disso, também se diz que o adufe, por ser um instrumento de dimensões pequenas, leve e facilmente transportável, seria por si mesmo associado à figura feminina. Os próprios embelezamentos que o adornam ligam-no, com as suas cores e decorações, à doçura e ternura, marcas identitárias do perfil tradicional da mulher, o mesmo se verificando até com o seu toque, por ser tão ligeirinho e animado.

Contudo, e ainda que possamos considerar o adufe um instrumento intrínseco da mulher, não podemos esquecer que em algumas tribos do norte de África, o frame drum quadrangular é maioritariamente usado por mãos masculinas. Da mesma forma, algumas das suas mais antigas representações peninsulares, como são os casos do tocador de adufe ou pandeiro quadrado presente na Catedral de Leão (séc. XI), e o do Vaso de Tavira (séc. XI/XII), também não o permitem olhar como sendo exclusivo das mãos femininas.

Então, mas afinal, o que é o adufe?

O adufe pertence à família dos frame drums, ou seja, é constituído por uma armação "as armas do adufe" em madeira. O adufe é, mais especificamente, da família dos pandeiros quadrados. Não se sabe ao certo quando os pandeiros quadrados chegaram à Península Ibérica; contudo, podem ser encontrados na zona da Galiza, Castela e Leão, Catalunha, Peñaparda (Salamanca), Miranda do Douro, Beira Baixa e Alentejo. É conhecido como pandero cuadrado em toda a Espanha, como pandeiro mirandês na zona de Miranda do Douro e como adufe na Beira Baixa e Alentejo.

Na década de 70, alguns jovens estudiosos e amantes da música popular portuguesa, em que participaram entre outros José Alberto Sardinha, José Manuel David e Vítor Reino, resolveram dedicar as poucas horas que as suas profissões e estudos lhes deixavam livres, à recolha e conservação em arquivo da genuína canção tradicional que ainda era possível ouvir nas zonas rurais portuguesas. Para o efeito, constituíram o “Grupo de Recolha e Divulgação da Música Popular da J.M.P. ‘ALMANAQUE’". Desse labor resultou, ainda nessa década, o disco Descartes e Cantaréus, publicado em 1979, onde escutamos logo na primeira música do Lado A, Sirigoça de Trás-os-Montes, acompanhada com o pandeiro mirandês com soalhas. Já na segunda música do Lado B, o instrumento musical é mesmo o protagonista do tema, o adufe, sendo-nos permitido ouvir As armas do meu adufe

Ai as armas do meu adufi
Ai as armas do meu adufi
Ai são de pau de laranjeira
Ai são de pau de laranjeira
Ai Quem houver de tocar neli
Ai Quem houver de tocar neli
Ai há-de ter a mão ligeira
Ai há-de ter a mão ligeira

Ao contrário do que a lírica da cantiga informa, dizendo que "as armas do meu adufe são de pau de laranjeira", expressão associada à celebração do casamento, hoje em dia a armação dos mesmos socorre-se de outros materiais. Em Portugal são com maior frequência construídos com madeira de pinho. As madeiras podem diferir consoante o acesso às árvores locais. Por exemplo, em Peñaparda são construídos em roble — carvalho — por ser uma madeira mais disponível na região e por ser mais dura.

O panderu cuadrau de Peñaparda é também o único, que se conhece até aos dias de hoje, tocado com uma baqueta, pousado na perna e sendo, por este motivo, necessária uma madeira mais dura e pesada.

O adufe é, portanto, constituído por uma armação em madeira, uma pele de animal, normalmente cabra ou ovelha, que usualmente é costurada, contendo no seu interior as soalhas (estas podem ser desde guizos, caricas, pedrinhas, sementes, moedas, etc). O Adufe é adornado com uma fita em toda a volta e, nos cantos, com maravalhas, feitas de pedaços de tecido ou pompons. É vulgarmente adicionada uma fita que serve como pega ou mesmo para expor o adufe na parede, como um brasão:

Diz qui o adufe é brasão
Ai diz qui adufe é brasão
Na casa di um idanhense
Ai na casa di um idanhense

O adufe é tradicionalmente tocado por grupos de mulheres, as adufeiras, que normalmente variam entre oito a doze pessoas, de todas as idades, estando posicionadas em meia lua. Há uma mulher que inicia o toque ao qual se unem as restantes introduzindo aquela, igualmente, a primeira quadra da música dando, assim, “o mote” para que as outras se juntem também ao canto.

As cantigas de adufe estão associadas às romarias, celebrações religiosas e aos despiques das mulheres solteiras e casadas. O grupo Almanaque apresenta no álbum publicado em 1984, Desfiando Cantigas, a Cantiga do Entrudo (Lado A) e a Cantiga das Casadas (Lado B), ambas acompanhadas por dois adufes.

Na capa do álbum Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, encontramos uma adufeira e podemos verificar que o próprio logotipo da ETMU é um adufe. A recolha foi realizada por José Alberto Sardinha e o trabalho de campo pelo grupo Almanaque, tendo sido editado em Portugal em 1982. É no Lado A que encontramos as músicas da Beira Baixa, as mais conhecidas de adufe, oriundas de Idanha-a-Nova (São João, Senhora dos Remédios, Divina Santa Cruz e Senhora da Póvoa), Covilhã, Fundão e Castelo Branco.

O álbum Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa, dedicado a Trás-os-Montes (Lado A), inclui a música Moda do Pandeiro, onde se ouve tocar o pandeiro mirandês entre cada quadra:

Viva quem toca o pandeiro
Viva quem o tem na mão
Viva quem há de levar
Menina o seu coração

Pandeiro de quatro esquinas
Não se toca com a mão
Toca-se com o anel d'oiro
Prenda do meu coração

Este pandeiro que eu toco
Não é meu que é da Maria
Que mo deu para tocar
No dia da romaria

Este pandeiro que eu toco
É feito de pele de ovelha
Ontem comeu na cabaça
Hoje toca que rabeia
 
A voz da mulher que toca o adufe é uma só voz, tal como se diz acerca do toque. Adufe: "um toque, uma voz" — expressão esta que se refere ao toque de cada música e não ao número de pessoas que a tocam e cantam. Ou seja, as músicas tocadas pelos grupos de adufeiras são normalmente cantadas em uníssono e seguem apenas dois ritmos: o binário ou o ternário.

Tanto as canções como o toque do adufe foram sendo transmitidas de geração em geração, de mães para filhas, de avós para netas. E é graças ao trabalho dos vários grupos de adufeiras, que se mantém esta herança cultural. Foi recentemente publicado no site da Fonoteca Municipal do Porto um artigo intitulado Rancho Folclórico (da Casa do Povo) do Paul, por Teresa Campos, onde descreve precisamente o valor do trabalho de um dos grupos de adufeiras.

Acresce que, apesar do adufe ser ele próprio o brasão de Idanha-a-Nova, por de lá ser oriundo, tem vindo a ganhar cada vez mais recetividade e expressão no litoral e nas zonas urbanas do país.

É impossível falar sobre o adufe e não mencionar a principal referência adufeira: Catarina Chitas, também conhecida como Ti Chitas (1913 - 2003), natural de Penha Garcia. Foi gravada por Ernesto Veiga de Oliveira em 1963 e Michel Giacometti na década seguinte.

A Ti Chitas, pastora de Penha Garcia, era detentora de um vasto repertório que continua a ser explorado e trabalhado por vários grupos, tendo sido construída uma estátua em sua homenagem na sua terra natal.

Enquanto tradicionalmente este instrumento seria tocado apenas por mulheres, é cada vez mais comum ser tocado também por homens, tendo vindo a ganhar expressão, não só no interior do país, mas também no litoral disseminando-se, igualmente e cada vez mais, um pouco por todo o mundo.

Já no que concerne ao fabrico deste tipo de instrumento torna-se inevitável falar de José Relvas, construtor de adufes de Idanha a Nova. Este aprendeu com o seu pai e tem já adufes espalhados pelos quatro cantos do mundo. Ao seu lado, também como aprendiz, curioso, estudioso e músico, esteve Rui Silva, cuja tese de mestrado, publicada em 2012, se intitula Al-duff: bases para a aplicação das técnicas de frame drums mediterrânicos ao adufe, séc. XXI adentro. Desde então, tem vindo a desenvolver estudos tanto sobre as cantigas e toques de adufe, principalmente junto das Adufeiras de Monsanto, como a explorar novas formas de inovar a construção, manutenção e afinação do adufe.

O trabalho desenvolvido pelo Rui, tem vindo a inspirar mais pessoas, tanto no que respeita ao toque do adufe mas também na sua construção, podendo destacar na zona de Lisboa a construtora Casulo de Instrumentos (Silvana Dias).

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