Natal: Um conto e vinte e um poemas - Fonoteca Municipal do Porto

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Natal: Um conto e vinte e um poemas

Armando Sousa

Resenha

22 Dezembro 2020

Do divino ao rés-do-chão humano, na voz de Miguel Torga, o poeta
Um anjo imaginado, dialético e atual, ergueu a mão e disse: É noite de Natal, paz à imaginação!

À lareira do frio dezembro transmontano de 1961, Miguel Torga escreveu nos seus versos, como em muitos outros natais, sobre esta sua ideia de Natal, onde o humano se sobrepõe ao divino, e o milagre cristão dá lugar a uma celebração profana e pagã de renascimento. No álbum Natal: Um conto e vinte e um poemas, publicado em 1986 pela Valentim de Carvalho, o poeta transmontano recita este e outros poemas natalícios da sua autoria (publicados até então nos seus Diários), aqui acompanhado pelo guitarrista Pedro Caldeira Cabral.

Tal como recita no seu poema Retábulo, de 1954, para Miguel Torga, o Natal dista muito do imaginário iconográfico cristão. Poeta mortal e sem remissão, escreve décadas mais tarde que, nesta data, “a divindade é o menos” e declara a sua descrença em Deus. Representada em alguns destes poemas pela desilusão perante as promessas mortas do Natal cristão, essa ausência de fé, que reside numa vacuidade fria, apenas pode ser preenchida pelo calor da fogueira da terra natal, símbolo do milagre, que aquece as almas da humanidade desagasalhada.

Apesar de serem referências constantes na sua poesia de Natal, a fogueira e o regresso a casa são elementos-chave do poema de 1955, Visita. É nestas duas ideias de calor e de reencontro com a memória, que Miguel Torga desenvolve a sua ideia do Natal como oportunidade de redenção e renascimento anual da humanidade e do humanismo ao encontro da natureza, à imagem do Deus-menino, que nasce cada ano, despojado e inocente.

No conto com que abre o LP, também intitulado Natal e que tinha sido publicado originalmente em Novos Contos da Montanha, com a sua clara e bela pronúncia transmontana, Miguel Torga conta a história da consoada de Garrinchas.

Com a prosa e a poesia recitadas pelo próprio autor, fica resumida neste disco uma ideia da natureza do homem, criador e destruidor de mitos: um “bicho” que nega os milagres criados para mais tarde, em desespero, procurar o sagrado “nas cinzas da lucidez”.

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