Music of Portugal: a composição portuguesa, além-fronteiras - Fonoteca Municipal do Porto

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Music of Portugal: a composição portuguesa, além-fronteiras

Pedro Junqueira Maia

Percurso

24 Julho 2025

Notável colecção discográfica publicada nos Estados Unidos sobre a música produzida por compositores portugueses referenciais do fim do século XIX e no século XX, Music of Portugal, série de 20 discos LP, ainda à época do vinil, dá a conhecer 76 obras de 21 compositores, que vão desde um Alexandre Rey Colaço, o mais antigo em nascimento aqui representado, aos recentes criadores musicais lusos, como o eram um Jorge Peixinho, uma Constança Capdeville ou um Filipe Pires, criadores lusos que se deram, efectivamente, como paradigmáticos na introdução da contemporaneidade no nosso país. Idealizada e coordenada artisticamente pelo já à altura reputado pianista Fernando Laires, relevante intérprete português precisamente a viver por terras norte-americanas onde eximiamente se dedicou ao ensino do instrumento, deu-se numa fase inicial promovida pela Embaixada Portuguesa nos Estados Unidos, consubstanciando-se os seguintes registos pelo impulso da Fundação Calouste Gulbenkian, entidade paradigmática na promoção da cultura portuguesa, não só musical mas inclusivé num âmbito artístico geral. Editada pela Educo Records, a colecção deu-se à luz entre os anos de 1974 e 1984, dando assim a conhecer além-fronteiras o que de composição musical se originava por Portugal.

Dos vinte e um autores representados, nove são ainda nascença do séc. XIX – Alexandre Rey Colaço, José Vianna da Motta, Francisco de Lacerda, Óscar da Silva, Luiz Costa, Luiz de Freitas Branco, Ruy Coelho, Cláudio Carneyro e António Fragoso –, tendo os doze os restantes já surgido em pleno séc. XX – Ivo Cruz, Frederico de Freitas, Armando José Fernandes, Croner de Vasconcellos, Artur Santos, Corrêa de Oliveira, Joly Braga Santos, Maria de Lourdes Martins, Filipe Pires, Constança Capdeville, Jorge Peixinho ou Victorino D’Almeida. Não permitindo o espaço a todas as referências citadas, especifica-se seguidamente alguns dos autores e referentes obras de marcante significância no percurso da série.

Trata-se, portanto, Alexandre Rey Colaço [1854-1928] do mais antigo dos representados nesta colecção. Natural de Tânger, Marrocos, filho de pai francês e mãe hispano-portuguesa, foi pianista e compositor, estudos primários em Madrid, concretiza o seu primeiro recital em Lisboa, em 1881. Prossegue instruções por Paris de onde se transfere entretanto para Berlim a persistir ensinamentos no instrumento e na escrita musical. De volta definitiva a Lisboa, em 1887, nacionaliza-se cidadão português e torna-se professor de referência no nosso país. Rey Colaço foi efectivamente uma das personalidade que em muito contribuiu para a cultura em Portugal, fosse como intérprete, como pedagogo (autor da interessante publicação De Música, a título de exemplo), ou como compositor cuja obra se aproxima de temáticas populares portuguesas, o que se tornou, de certa forma, referência no seu carácter inventivo particular.

Importante autor não só pela sua preciosa criatividade musical, mas pelo considerado trabalho que igualmente desenvolveu por terras internacionais, o açoriano de nascimento Francisco de Lacerda [1869-1934] iniciou-se igualmente por aprendizagens em medicina, nunca deixando de se prestar à música, à qual se entregou profundamente. Já por Paris, foi discipulo do afamado Vincent d’Indy, manteve entretanto relações próximas com personalidade de relevo como um Claude Debussy ou um Erik Satie. Music of Portugal inclui a sua incontornável série de Trovas, grupo de canções tradicionais harmonizadas pelo próprio seguindo o seu valoroso trabalho de consideração sobre a canção popular, que muito se lhe ligou.

Inserido no grupo de compositores lusos de transição destes séculos, Luís Costa [1879-1960], amiúde referido como exímio na sua música para piano, foi discípulo do renomado Vianna da Motta. Mantendo um rigorosa carreira no instrumento (chegou inclusive a fundar uma afamada escola de pianistas no Porto, através das suas docências particulares), dão-se profusamente nesta colecção precisamente representações de obras da sua produção criativa pianística solo, às quais se acresce uma em duo, flauta e piano, podendo-se assim se rever a sua característica criativa.

Ilustre autor, criador de paradigmáticas obras que viriam a marcar a historiografia lusa foi, efectivamente, um Luís de Freitas Branco [1890-1955]. Socorrendo-nos das palavras de Humberto d’Avila, autor das notas inseridas na colecção Music of Portugal ela própria, “…um dos compositores mais sérios de meados deste século”. Personalidade paradigmática no nosso país, deu-se não só como relevante compositor mas igualmente como musicólogo de elevado coturno, intenso crítico musical na imprensa portuguesa, autor de livros que se tornaram emblemáticos para o estudo da música em Portugal, fundador da revista Arte Musical da Juventude Musical Portuguesa, entre tantas e outras coisas. Se inicialmente, ainda bastante jovem e quando estudava por terras estrangeiras, compôs obras paradigmáticas de uma verdadeira contemporaneidade mundial (das quais podemos referir um bombástico Vathek, de 1913, ou até os honrados Paraísos Artificiais, a título de exemplo), segue no entanto, e aquando a sua volta ao seu país de origem, uma linguagem estética de predominância neomodal, como seja, por exemplo, a sua Primeira Sinfonia, de 1924. Entre outras obras, refira-se nesta colecção a totalidade seus Prelúdios para piano, escritos entre 1916 e 1940.

Precedente autor português no emprego de algumas técnicas que se poderão classificar de mais ‘modernas’ na composição em Portugal, Cláudio Carneyro [1895-1963] pertencia uma família portuense perfeitamente ligada às artes – não fosse seu pai o ilustre e afamado pintor António Carneyro. Iniciando-se como instrumentista (violinista), decide-se entretanto com afinco à composição, deslocando-se para estudos em Paris onde trabalha com os já reputados Charles Widor e Paul Dukas. Novamente socorrendo-nos das palavras de Humberto d’Avila, a música de Cláudio Carneyro “expressa a faceta dominante do seu temperamento reservado e intimista, por vezes severo e até frio, mas sem falta de sensibilidade e refinamento”. A obra aqui inserida, o Quarteto de Cordas em Ré menor, deu-se à luz em 1947, a partir de uma encomenda do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional, e poderá ser classificada como das mais significativas na sua produção de compositor.

Outro dos compositores aqui representados que se iniciou nas suas próprias obras empregando técnicas de alguma forma modernas é Jorge Croner de Vasconcelos [1910-1974], autor que teve inclusive o privilégio de ter assistido a aulas com uma Nadia Boulanger ou mesmo um Igor Stravinsky! Oriundo de familia de músicos (seu pai, seu avô…), inicia-se na dedicações às Letras, carreira que viria a declinar em favor de aplicação definitiva à música. As três peças para violino e piano que aqui se promovem reiteram, em boa verdade, o percurso formal do seu autor.

Entretanto, Fernando Corrêa de Oliveira [1921-2004], compositor de primeiro objecto de actividade (aluno de Cláudio Carneyro), dedicou-se inclusive ao estudo da direcção musical em Veneza, alturas em que vai organizando ideias para um sistema musical próprio que lhe viria a servir como base de praticamente todas as suas obras – a Simetria Sonora –, que teve oportunidade de apresentar em várias ocasiões, nomeadamente no admirável centro de Darmstadt, a meca da música contemporânea de então. Em conversa de café com pessoas que de perto com Corrêa de Oliveira conviveram, imediatamente salta á concordância que o compositor era, a bom rigor, possuidor de uma personalidade inquieta, agitada, alguém para o qual o “criar”, o “fazer”, se tornava de imperiosa necessidade. Incluem-se nesta edição Music of Portugal as 8 Peças Progressivas, para violoncelo e piano, de 1965, obra em que explora concomitantemente características de concerto e pedagógicas, assunto que se relevou sempre no autor.

De salientar ainda um Joly Braga Santos, nascido em 1924 e falecido em 1988. Destacado aluno de Luís de Freitas Branco, iniciou-se como compositor a partir de uma abordagem predominantemente neo-modal, paulatinamente dedicando-se a explorações de linguagens num âmbito mais cromático, livre. Com uma produção que se atestou por várias vertentes de efectivos, imbuiu-se igualmente na escrita de música para cinema, teatro e outras áreas, nesta série aqui abordada incluem-se trabalhos da sua linguagem caracteristicamente modal, como o sejam o seu Nocturno, para violino e piano, de 1942, a Ária para violoncelo e piano, de 1946, Quatro Canciones, Op. 47, para coro a capella, estruturadas sobre textos poéticos anónimos de um Cancioneiro Espanhol, ou ainda os Dois Motetes, para coro misto, de 1974.

Também de composição no feminino é consistente a historiografia sonora portuguesa, aqui representada por duas compositoras de relevo – Maria de Lourdes Martins, nascida em 1926, desaparecida em 2009, e Constança Capdeville, de 1937, falecida em 1992, esta efectivamente das mais relevantes criadoras que em Portugal se notabilizou. A referir de importância na actividade de Maria de Lourdes Martins, não só a sua produção como compositora, de relevo, mas igualmente a determinação de radical interesse que incutiu no plano da pedagogia, tendo mesmo introduzido e desenvolvido em Portugal, com alargados êxitos, refira-se, os afamados métodos de ensino de Orff e Kodaly, com os quais manteve contacto enquanto estudava em Munique, na Alemanha. Já Constança Capdeville, fulcral personalidade da contemporneidade em Portugal, já pelos finais da década de 50 que se dedicava a experiências de sonoridades mais prospectivas, nomeadamente pelo seu enorme interesse no gesto e no texto, elementos aos quais sempre recorreria no escopo de conseguir uma musicalidade da palavra. “A música já não pode viver sozinha”, referiu em várias ocasiões. Advogava assim Capdeville o surgimento em Portugal desta vertente Música-Teatro, consumado género aprimorado por um argentino Kagel, ou por um francês Aperghis. Integra no entanto esta colecção Music of Portugal a sua Sonata para Trombone e Piano, obra de 1963, escrita por sugestão de seu professor da altura, Santiago Kastner (grande apreciador do intrumento trombone, segundo referido por Álvaro Salazar) e onde procura Constança como que uma liberdade nos restrigimentos académicos.

Destacável pelas primeiras incursões na linguagem dodecafónica em Portugal, que entretanto liberta por caminhos outros versáteis, nomeadamente pela dedicação em áreas como a electroacústica, Filipe Pires [1934-2015] é dos autores aqui representados por várias peças que concernem desde as suas primeiras criações, quando se dedicava a uma linguagem de um certo pendor neoclássico, até às produções ampliadamente mais libertas dessas tradições. Depois de uma primeira carreira como pianista, na qual tinha obtido amplos resultados, nomeadamente granjeado elogiáveis prémios na interpretação instrumental, dedica-se à composição com o mesmo elevado requinte. As obras nesta colecção incluidas acercam-se tanto de linguagens harmonicamente modais (Sonatina, para violoncelo e piano) a planos formais paradigamaticamente clássicos, mas onde desenvolve as suas primeiras experiências dodecafónicas (Quarteto de Cordas), de explorações de linguagens actuais, como o sejam o seu Trio escrito em 1960 (que foi congratulado com o Primeiro Prémio Alfredo Casella), a algumas das suas emblemáticas Figurações para instrumentos solistas, obras em que parte do afamado serialismo dodecafónico, mas tratado de forma perfeitamente livre e socorrendo-se inclusive, em algumas delas, de planos formais abertos, até Ostinati, para instrumentos de percussão, onde subjuga um material sonoro afastado de organizações seriais a certas liberdades improvisadas pelo intérprete.

Dos primeiros, senão mesmo o primeiro criador de verdadeira vanguarda musical em Portugal, Jorge Peixinho [1940-1995], dedica-se ainda ao longo dos anos 50 ao ensaio de destrezas sonoras por demais avançadas à altura no nosso país, como fosse, por exemplo, o tocar dentro do piano, a pesquisa e o trabalhar do timbre de forma assumidamente mais radical. Estudos pelo estrangeiro com já reputados contemporâneos como um Porena ou um Petrassi e de entremeio com Luigi Nono e mesmo com um Pierre Boulez e um Stockhausen, chegou inclusive a colaborar com este último no afamado projeto de composição em grupo Musik für ein Haus! Nesta colecção incluíem-se duas obras de relevo na sua produção, a primeira Episódios, para quarteto de cordas, partitura escrita em inícios dos anos 60 aquando os seus primeiros momentos das aprendizagens por Itália (”um desafio escrever para essa formação, rica de história e de memória”, refere o próprio compositor em entrevista à revista Arte Musical), a segunda Sucessões Simétricas, para piano, de 1961, aqui revelada pelas mãos de Fernando Laires, esse responsável pelo impulso desta série – Music of Portugal.

A referir ainda, nestes mais recentes incluídos na colecção, um compositor ainda vivo e activo nos dias de hoje, o único nesta condição presente nesta colecção – António Victorino d’Almeida. Nascido em 1940, notabilizou igualmente como pianista e maestro, mas também como divulgador musical e agente cultural a partir da autoria e apresentação de programas televisivos que, à altura, muito afamados se mostraram. As suas primeiras obras criaram-se precisamente para o seu instrumento de eleição, o piano, deleitando-se no entanto com outros trabalhos, como o seja a reconhecida como controversa ópera – Canto da Ocidental Praia, escrita em 1972. Music of Portugal inclui a sua Sonata N.º 3, para piano.

Importa entretanto referir os intérpretes associados aos registos dos trabalhos, foram eles na sua larga maioria, e porque natural, músicos oriundos e presentes nos Estados Unidos onde se deram efectivamente as gravações. Dois nomes portugueses fizeram não obstante parte – Fernando Laires, pianista e motivador magno da existência do projecto em si (que, e como referimos já, era à data professor precisamente por terras norte-americanas), assim como a renomada Helena Sá e Costa, também pianista, que se entregou precisamente à interpretação de peças de seu pai, Luís Costa.

Tanto e mais poderia se abordar, pois por mais e demais razões se torna de elevado interesse e radical importância uma colecção como esta sobre música consumada por compositores portugueses, editada e publicada em terras estrangeiras. Mais ainda extra Europa – e nos anos 70/80. Em boa verdade criou-se e tornou-se assim um vinculo de enorme magnitude, pois se possibilitou expandir e relevar por esse mundo fora o que se produz no que concerne à criação musical em Portugal.

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