Madredeus: uma bagagem espiritual - Fonoteca Municipal do Porto

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Madredeus: uma bagagem espiritual

Miguel Rocha

Percurso

30 Outubro 2025

Na longa-metragem Lisbon Story, Philip Winter (Rüdiger Vogler) vagueia por Lisboa em busca do seu fado. À medida que explora os cantos e recantos da cidade à procura de Friedrich, o seu amigo realizador que o convidou a visitar a capital portuguesa para o ajudar a terminar um filme, dá de caras com uma abundância de situações que o levam a afeiçoar-se pela cidade – e não só. A dado instante durante a trama, Philip abre uma porta e depara-se com um momento mágico.

Em silêncio, como deve ser, Philip observa os Madredeus a tocarem e cantarem Guitarra, uma das canções que o grupo compôs para a banda sonora do filme de Wim Wender, e apaixona-se. Pela música, pela voz de Teresa Salgueiro, talvez mesmo pela própria cantora. Como Philip, muitos milhares em 1994 – ano em que Lisbon Story foi exibido nos cinemas – também se apaixonaram por todo aquele cenário. Com o alcance de Lisbon Story, os Madredeus cristalizaram o seu percurso de quase uma década de existência e tornaram-se um fenómeno à escala mundial.

A ambição por detrás dos Madredeus esteve presente desde a conceção do projeto. Se existe uma palavra que possa ajudar a definir o grupo, é essa. Afinal, os dois músicos que deram origem a Madredeus foram dois dos músicos mais ousados da década de 1980 na música portuguesa: Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão. Durante uma off-season dos Heróis do Mar, do primeiro, e dos Sétima Legião, do segundo, que Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão juntaram-se para esboçar aquilo que seriam as primeiras ideias para um novo projeto musical. Corria o ano de 1985.

A Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão não faltavam ideias para o que seria o universo dos Madredeus. A ideia base, contudo, era esta. Os Madredeus seriam um grupo de “música portátil”, capaz de “viajar pelo mundo sem precisar de grandes bagagens”. A citação é de Rodrigo Leão e aponta outra vez na direção da ambição que povoou as ideias dos músicos logo desde o primeiro momento.

Rodrigo Leão e Pedro Ayres Magalhães estavam cientes que tinham em mãos uma proposta diferente e arrebatadora. Não pretendiam ser embaixadores da música portuguesa no estrangeiro, como afirmaram mais tarde na sua carreira, mas tinham a certeza que iam levar a sua música a tudo o que era sítio. Contudo, para que conseguissem dar asas aos seus devaneios, precisavam de encontrar as peças exatas para o seu dominó.

Musicalmente, as ideias de Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão não se aproximavam do universo sonoro dos seus principais projetos. Guitarras elétricas, até ver, não se iriam escutar; baixo e bateria, então, nem queriam ouvir falar disso. A música deste seu novo projeto deveria ser acústica, digna de ser escutada constantemente em silêncio, palmas apenas para ser batidas só mesmo após a última nota ser totalmente tocada ou cantada. Pedro Ayres Magalhães domava a guitarra clássica, Rodrigo Leão as suas belas teclas. A eles, juntar-se-ia Francisco Ribeiro no violoncelo, Gabriel Gomes no acordeão e Teresa Salgueiro, a voz e alma do alinhamento mais reconhecido do grupo.

Os Madredeus terem encontrado Teresa Salgueiro foi uma sorte, o tipo de fortuna que só se justifica pelo alinhamento planetário de estar no sítio à hora certa. Enquanto Pedro Ayres Magalhães se encontrava ausente do país a promover Duma vez por todas, o filme de Joaquim Leitão que protagonizou, Rodrigo Leão e Gabriel Gomes vagueavam por Lisboa a fazer das suas. Certa noite, escutaram uma jovem a cantar a cappella num bar do Bairro Alto e apaixonaram-se. Tinham encontrado o fado que cobiçavam em Teresa Salgueiro, a quem prontamente endereçaram um convite para vir a uma audição. Antes dela, já tinham tentado 13 vozes femininas, nenhuma delas apropriada para os caprichos do grupo. Mas Teresa? Ela sim. Fazia sentido. A predestinada. Quando Rodrigo Leão e Gabriel Gomes ligaram a Pedro Ayres Magalhães a informarem da existência da jovem de 17 anos, mal conseguiram conter a sua excitação. Quando “Dedos de Tubarão” regressou do Brasil, juntaram-se todos no estúdio de Paulo Abelho, outro dos integrantes dos Sétima Legião, e algo de belo aconteceu. Um clique. Tudo fez sentido. O casamento artístico consumou-se logo ali.

Ao longo dos próximos dois anos, os Madredeus esboçaram as canções do seu primeiro longa-duração. Afinaram as ideias, alinharam a voz de Teresa com belos instrumentais, repensaram como concretizariam a sua visão do cruzamento da canção moderna portuguesa com uma certa sobriedade proveniente da sua abordagem erudita. Quando Os Dias da MadreDeus foi publicado pela EMI em 1987, caiu como uma pedra no charco no cenário da música portuguesa da época. Belíssimo disco, sem dúvida. Todavia, como categorizá-lo? Não é propriamente um álbum de fado, mesmo que o soprano de Teresa esteja muito próximo do registo de uma fadista. A sua voz canta os amores de mil vozes diferentes, os desamores de outras mil, as histórias não-contadas e escondidas de uma cidade – Lisboa – com muito por ainda descobrir. Mas guitarra portuguesa? No mundo dos Madredeus, não existe. Então, que tal folclore para descrever Os Dias Da MadreDeus? A banda rejeitou a associação ao termo, mesmo que as influências dos ritmos celtas e pagãs fossem cruciais para as composições da banda.

O que se escuta em Os Dias da MadreDeus são canções que habitam um universo de profunda devoção a três conceitos interligados na mitologia da banda: cidade, saudade e verdade. É isto que Teresa canta em A Cidade, grandioso tema, onde o eco da sua voz (fruto do álbum ter sido gravado em direto no Teatro Ibérico, na antiga igreja do Convento de Xabregas), se transforma nesses sentimentos. Aqui, Lisboa ganha contornos de cidade misteriosa com histórias por descobrir, e a saudade invocada é por um Portugal passado, talvez um até demasiado rural, espiritual e tradicional. É esta a verdade dos Madredeus, verdade essa que seria ainda mais ampliada nos discos seguintes.

Em 1990, a EMI publicou Existir, o segundo álbum dos Madredeus. A nível nacional, consagrou a popularidade do grupo, e além-fronteiras, abriu caminho para consagrar o grupo como o projeto português mais internacional desde Amália Rodrigues. No ano seguinte, após levarem Existir à Bélgica para uma exposição dedicada à cultura portuguesa, as portas abriram-se para os Madredeus. Primeiro, a restante Europa; depois, o resto do mundo, muito à boleia da combinação dupla de álbuns publicados em 1994 e 1995. Primeiro, o estonteante O Espírito da Paz. A seguir, a belíssima banda sonora para Lisbon Story, o último registo de estúdio dos Madredeus com contribuições de Rodrigo Leão.
Em Existir, os Madredeus encontraram alegria extra na sua melancolia, consagrando-se com temas que custa assumir que são mais “pop” – como chamar a isto música que não popular, contudo? –, mas que efetivamente são. O refrão de O pastor, o “hit” dos Madredeus, fica preso na cabeça – tudo porque Teresa o canta como se o mundo dependesse disso. Claro, o instrumental ajuda. É um dos momentos mais “dançáveis” da discografia da banda e um que justifica inteiramente a existência de Eletrónica, compilação editada em 2002 com versões de eletrónica de múltiplas cantigas do repertório da banda.

De alguma forma, a espiritualidade dos Madredeus também estava em conseguir-nos meter a dançar em torno de fogueiras outra vez. Em Os Dias da MadreDeus, A Vaca de Fogo, uma das mais importantes faixas do catálogo da banda, introduziu-nos a esses momentos. Em Existir, malhas como O pastor ou Solstício relembram-nos desse lado dos Madredeus, um de profunda devoção à Natureza, ao celestial, ao fantasmagórico. Talvez seja por isso que, após a saída de Rodrigo Leão da banda, os Madredeus necessitaram de refazer o seu paraíso. Novos membros entraram, outros saíram, e O Paraíso, editado em 1997, é o culminar do percurso áureo do grupo, disco transcendental onde se encontram presentes as composições mais arrojadas da banda.

Daí a 10 anos, e três álbuns depois (todos eles sólidos – se há algo que os Madredeus nunca fizeram, foi um álbum mau), Teresa Salgueiro abandonaria o grupo. Os Madredeus continuariam, com apenas Pedro Ayres Magalhães a ser o único resistente da formação original, mas nunca mais a banda foi igual. A própria Lisboa cantada pelos Madredeus já não existe, talvez nunca tenha existido. Na música dos Madredeus, escuta-se as ondas do Tejo a esbater no cais distante, as flores do jardim a ganharem vida após uma manhã de nevoeiro fechado.

A influência dos Madredeus, contudo, é notável na música portuguesa. Dos projetos de João Aguardela (como Megafone ou A Naifa) a B Fachada ou de Ana Lua Caiano a Pedro Mafama, a ideia dos Madredeus de combinarem a modernidade com tradição persiste e resiste. Nem todas essas manifestações são dignas de serem exploradas, mas há algumas que obedecem a um sentimento espelhado na música dos Madredeus. Neste universo, todas as mínimas vivências parecem um sonho eterno que se estendem sem fim. A música dos Madredeus é eterna, não tem idade. Por isso, as grandes canções do grupo, e são tantas, mas tantas, soam tão frescas hoje como quando foram reveladas ao mundo. São composições que, uma e outra vez, deixam-nos tão incrédulos como se as estivéssemos a escutar pela primeira vez. Em Lisbon Story, Philip tinha razão com o seu deslumbre. Não há música alguma como a dos Madredeus.

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