Joly Braga Santos, ou a música moderna portuguesa a se querer mostrar - Fonoteca Municipal do Porto

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Joly Braga Santos, ou a música moderna portuguesa a se querer mostrar

 Gonçalo Tavares

Percurso

16 Maio 2024

Variações Sinfónicas sobre um Tema Alentejano termina com uma apoteose calculada, mas com uma outra graça. O tema de folclore alentejano apresentado no início desenvolve-se gradualmente, experimentando diversas impressões, quase todas próximas ao ouvinte de alguma forma. O motivo, nostálgico, habita um canto recôndito do nosso inconsciente - a representação mental de um lar, memória antiga de uma casa de férias, o cheiro de um campo, um regresso chuvoso à terra natal. Este é o impacto da música de Joly Braga Santos, onde o tamanho da orquestra, o tratamento de contraponto ou o cromatismo não afectam a sua capacidade de comunicar com o ouvinte. É esta a sua vontade.

O exemplo anterior é, contudo, injusto. Uma obra que se baseia num tema folclórico (recolhido pelo compositor “quando um grupo de cantadores ia homenagear Luís de Freitas Branco, seu mestre, por ocasião das Festas da Epifania / Dia dos Reis” segundo José Blanc de Portugal) faz mais rapidamente a ponte com um ouvinte abrigado pelo mesmo contexto. Na Elegia a Vianna da Motta, o peso solene do motivo executado pelas cordas graves tem um carácter evocativo instantâneo, tão elegíaco como dinâmico, mas sempre com um travo familiar.

Esta familiaridade vem possivelmente do sentido melódico aguçado de Joly Braga Santos. Na sua obra, sinfónica, de câmara ou para bailado, as melodias desenvolvem-se desafogadamente, sempre com tempo para respirar, e sucedem-se umas às outras num estímulo constante. Ouvimos esta cadência desde o seu opus nº 1, Nocturno para Violino e Piano, até à sua última composição. Se Joly Braga Santos soube incorporar as novas tendências vanguardistas na sua linguagem musical, facto comprovado em algumas entradas no seu catálogo, parece que estas mudanças decorreram de uma necessidade ou curiosidade pontual de as incorporar. Não são essenciais.

Em Suite para Danças, encomenda da Secretaria de Estado da Cultura e dedicada aos Opus Ensemble, que titulam o registo, ouvimos sarabandas e tarantellas sempre dominadas pela linguagem clara e melodismo referidos. O gingar destes ritmos, aqui suportados pela proficiência técnica do colectivo, andam de mãos dadas com o carácter das obras anteriores, de cariz orquestral.

Joly Braga Santos foi um compositor precoce. Se regressarmos ao seu opus nº 1, Nocturno para Violino e Piano, composto aos 18 anos, conseguimos ouvir algumas das características já referidas, que o marcam criativamente. Esta peça foi dedicada ao violinista Silva Pereira e estreada em 1942 na Emissora Nacional, juntamente com o pianista João de Freitas Branco.

Entre os 22 e os 26 anos, Joly Braga Santos concluiu as suas quatro primeiras sinfonias (sobrariam duas), género musical em que se destacou. Até então estamos perante uma escrita lírica e mais tradicional. O sentido modal reflecte influências de Luís de Freitas Branco (uma curiosidade: Joly apoiou-o quando este foi afastado do Conservatório de Lisboa, numa manifestação corajosa perante o Regime), música tradicional portuguesa mas também renascentista. Há uma primazia das formas tradicionais (sonata, rondó, ABA), assim como dos géneros (variações, aberturas, sinfonias…). A orquestração é simples, o uso de ostinati e harmonização em quartas/quintas é constante e o domínio do contraponto é evidente. Como exemplo, o Nocturno comporta uma estrutura ABA e é harmonicamente suportado por uma escala modal. A melodia é imediatamente eficaz.

A par das sinfonias, este período criativo trouxe as suas duas primeiras aberturas sinfónicas (em 1946 e 1947, respectivamente), o primeiro quarteto de cordas (1945), a cantata A Conquista de Lisboa (1947) ou a referida Elegia a Vianna da Motta (1948). Ainda antes de completar 30 anos, Joly Braga Santos escreveu as Variações sobre um Tema Alentejano e o Concerto em Ré para Cordas, duas das suas obras mais populares, a sua primeira ópera, Viver ou Morrer, e a terceira abertura sinfónica.

A colecção Music of Portugal, de onde faz parte a gravação do Nocturno para Violino e Piano, foi o principal recurso para a presente pesquisa, manifestada pela música de Joly Braga Santos mas também pela relação com os seus contemporâneos. A colecção contempla 20 LPs compostos por música portuguesa desde o renascimento até à segunda metade do século XX. O que começou por ser uma tentativa de dar a conhecer compositores e/ou partituras pouco tocados tomou a ambição grandiosa de fotografar a produção musical portuguesa ao longo de mais de 500 anos. Music of Portugal foi possível devido ao apoio e mecenato da Embaixada Portuguesa nos Estados Unidos e da Fundação Calouste Gulbenkian, numa união de esforços inusitada. Fernando Laires, o mentor e director artístico do projecto, pretendeu criar uma “antologia da música portuguesa que promovesse novas investigações e incentivasse novos diálogos”. Conseguiu-o indubitavelmente.

Joly Braga Santos foi bolseiro do Instituto de Alta Cultura em Veneza no final dos anos 40, onde estudou musicologia e composição com Virgílio Mortari, Gioacchino Pasquali e Alceo Galliera. Frequentou também o Curso Internacional de Direcção de Orquestra com Hermann Scherchen, tendo sido colega de Luigi Nono, Bruno Maderna e Fernando Corrêa de Oliveira. Com estas experiências, Joly desenvolveu um contacto regular com as novas tendências que se espalhavam pelo panorama musical europeu. Este contacto precede uma fase criativa distinta, onde tentou integrar na sua escrita novas técnicas vanguardistas, explorando harmonia e cromatismo. Contudo, ao ouvirmos obras como a sua quinta sinfonia ‘Virtus lusitaniae’ (1966), damos de caras com o mesmo sentido melódico e lirismo que caracterizam o seu opus nº 1.

O Concerto para Viola (1960), geralmente considerado como o destaque da sua música concertística, presenteia-nos com uma “tentativa de equilíbrio entre as tendências cromáticas e modais” segundo Sérgio Azevedo, entre o Joly pré e pós-Darmstad. Ao lado do concerto destaca-se ainda o Divertimento n.º1 (1960), baseado em quatro melodias tradicionais, e os Três Esboços Sinfónicos, onde Piedade Braga Santos, filha do compositor, vê a primeira tentativa do pai de adoptar as técnicas vanguardistas europeias.

Apesar da precariedade da vida musical portuguesa da sua época, Joly Braga Santos viveu quase sempre exclusivamente da composição, graças às bandas sonoras para filmes e ao emprego na Emissora Nacional, que lhe permitiram dedicar-se à composição orquestral. Foi este o ginásio para a sua linguagem musical e melodismo.

Além de compositor, Joly Braga Santos foi um dos fundadores da Juventude Musical Portuguesa (o respectivo hino tem origem no último movimento da sua Sinfonia nº 4), lecionou no Conservatório de Lisboa, foi membro do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional, adjunto da direcção da Orquestra do Conservatório do Porto e da Orquestra Nacional e crítico musical em vários jornais e revistas.

A obra mais importante que escreveu depois de ‘Virtus lusitaniae’ foi a ópera Trilogia das Barcas baseada em Gil Vicente e estreada em 1970. Os temas nacionalistas de algumas entradas do catálogo de Joly Braga Santos levaram a que alguns investigadores questionassem as suas posições ideológicas e políticas, ainda que nada na sua biografia (pouco detalhada, note-se) aponte para que tivesse sido um defensor do Estado Novo.

Esta suspeita relaciona-se parcialmente com a sua quinta sinfonia. Composta entre 1965 e 1966, foi uma encomenda do Estado Novo para a comemoração dos 40 anos do regime. O subtítulo ‘Virtus lusitaniae’ traduz a designação romana de Portugal. Esta obra é o exemplo mais evidente de uma obrigação disfarçada de encomenda. Joly Braga Santos nunca quis sair do país e, para sobreviver, foi obrigado a escrever obras de enaltecimento do estado, o que desencadeou as críticas referidas. Como um todo, a Sinfonia n.º 5 está longe da estética defendida pelo Estado Novo, tendo sido simultaneamente galardoada com um prémio da UNESCO em 1968.

Entre o experimentalismo e tentações estéticas, vanguardas e pressões políticas, Joly Braga Santos permaneceu inerte à mudança da sua linguagem.

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