Há que violentar o sistema - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Há que violentar o sistema

 Diogo Duarte

Percurso

05 Maio 2022

Os Aqui D’el Rock e a origem do Punk em Portugal
Era 1977 e a democracia ainda dava os primeiros passos em Portugal. Apesar de o fulgor revolucionário já não ser o mesmo de 1974, as promessas de abril continuavam em aberto. Mas, mesmo assim, já havia quem quisesse mandar tudo abaixo outra vez. Em Lisboa, num aglomerado de barracas e casas pré-fabricadas, conhecido como Bairro do Relógio ou Bairro do “Cambodja”, um grupo de rapazes – José Serra, Fernando Gonçalves, Alfredo Pereira e Óscar Martins – juntava-se para criar a primeira banda punk a gravar em Portugal, os Aqui D’el Rock. Em 1978, no single de estreia, clamavam como uma blasfémia que havia que violentar o sistema (in Há que violentar o sistema) e desafiavam o otimismo democrático fazendo-o sem vontade nem futuro (in Quero tudo). Se antes tudo parecia chegar atrasado a Portugal, o punk irrompia quase instantaneamente. Eram os rumores de uma outra revolução a chegar ao país, pronta a abalar a modorra nacional. Para estes rapazes, tinha-se esgotado a paciência e o presente era demasiado insuportável para esperar pelo futuro.

A música tinha sido um dos meios com que se fez o caminho para a revolução. Mas na cultura e nos costumes pouco tinha mudado. Para uma juventude sedenta de novas experiências, linguagens e formas de vida, parecia não haver lugar no imaginário dos baladeiros e dos cantautores de intervenção. A anunciada renovação musical continuava por acontecer e as sonoridades que dominavam as ondas radiofónicas continuavam demasiado presas a uma paisagem folclórica e tradicional, indiferente às ruturas estéticas que explodiam noutras paragens e, por isso, distante dos anseios que emergiam nos centros urbanos. Como sintoma deste conservadorismo duradouro, ecoavam, ainda, as palavras de Zeca Afonso, proferidas anos antes, quando criticava aqueles que importavam “música fabricada na Europa e na América” e considerava o Ié-Ié (o nome dado ao rock em Portugal) um “ritual do chinfrim”, “a expressão de um processo de decadência de uma sociedade” e algo “destituído de valores intelectuais”.

Mal sabia que, anos depois, bandas como os Aqui D’el Rock fariam do “chinfrim” e da “decadência” um manifesto a exibir com orgulho. Em Há que violentar o sistema, a guitarra surge como uma serra elétrica a desbravar caminho para a voz, irascível, que parece cuspir as palavras com o desdém de quem vem para pôr tudo em causa, até a própria revolução. Afinal, perguntavam, qual é a coisa qual (…) que de tanto mudar continua igual? A “coisa” era o sistema que nos querem meter pelos cornos abaixo; um sistema a que chamavam socialismo, mas que não passava de uma reformulação do sistema capitalista (in Rock em Portugal, maio/junho de 1978). Sem aviso prévio, o conflito chegava para tomar o lugar da “intervenção” na música e exprimia um desejo universal que desprezava qualquer especificidade nacional.

A rutura que os Aqui D’el Rock introduziram não foi apenas estética. A democracia ainda não tinha chegado à criação musical. Os instrumentos, e o tempo para aprender a dominá-los, eram um luxo acessível a poucos. E no rock que se fazia em Portugal nos anos 70 predominavam as marcas de um certo elitismo que celebrava a virtuosidade e a competência técnica. O próprio punk desenvolve-se em Portugal principalmente pela mão da classe média da Avenida de Roma, caso dos Faíscas, que contactavam com as novidades in loco, através de viagens ao estrangeiro, e com poder de compra para importar as roupas e os álbuns da moda. O percurso que os tinha levado até ao punk não podia ser mais diferente: José Serra, baterista dos Aqui D’el Rock, tinha iniciado a sua “carreira” a ensaiar numa secretária e senta-se pela primeira vez numa bateria quando se estreia ao vivo com um “grupo de baile” que tinha no seu repertório covers de Black Sabbath ou Led Zeppelin. Quando surge o apelo do punk, e o mote já não era o “baile” mas o motim, os Aqui D’el Rock continuam a não ter muito melhor do que instrumentos improvisados ou em elevado estado de degradação. A própria gravação das músicas do single de estreia atestava a condição de outsiders da indústria musical: em quatro horas, os músicos tiveram que carregar, montar e desmontar os instrumentos e gravar a primeira proclamação ao mundo, sem truques nem efeitos. Mas também assim se firmava a mensagem mais importante do punk: faz tu mesmo. A música como um campo estrito e seleto, mais parecido a um concurso de talentos para exibir o domínio das escalas musicais, os melhores instrumentos e os efeitos de luzes mais espectaculares, transformava-se em urgência, numa necessidade de expressão irreprimível, em que a única condição era a vontade. Tal como diziam numa entrevista, “as pessoas têm de viver urgentemente senão tornam-se cadáveres ambulantes” (in Música & Som, 1979).

Os Aqui D’el Rock carregariam o estandarte do punk mais uns anos. Com mais de uma dezena de concertos na bagagem, em 1979, voltavam ao estúdio para gravar o single 7’ Eu não sei (cuja edição original está disponível na Fonoteca Municipal do Porto). A música soava mais imediata e direta do que no registo anterior e encaixava melhor no que se esperava de um álbum punk. Contra os longos 4 minutos e 20 segundos de Há que violentar o sistema, a música Eu não sei durava 1 minuto e 58 segundos (ao ponto de a faixa ser reproduzida duas vezes no Lado A), e Dedicada… (A quem nos rouba) 2 minutos e 23 segundos. Por cima de uns riffs roufenhos e das curvas apertadas de uma bateria que parecia esforçar-se para não descolar do chão, o vocalista Óscar berrava que “não vou deixar nenhum símbolo de pé” (in Eu não sei) e alertava quem nos rouba / P’ra quem nos rouba/ morre, morre se puderes (in Dedicada…). Tal como mandavam as regras, os solos assemelhavam-se a trituradoras prontas a despedaçar as orquestrações e as harmonias do rock sinfónico que então monopolizava o campo “alternativo” em Portugal. Mas na capa anunciavam-se já outros horizontes: o lettering multicolorido do nome da banda afastava-se da estética punk e encabeçava uma foto distorcida de uma atuação ao vivo (um dos momentos altos no seu percurso: o concerto de abertura para Eddie & the Hot Rods no Coliseu de Lisboa). Com uma vida turbulenta, Eu não sei seria o último registo da banda. Em 1981, em parte para fugir ao “estigma” punk, os Aqui D’el Rock davam lugar aos Mau-Mau e abraçavam uma sonoridade mais dançável e próxima da “new wave”, gravando o single Xangai e o Lado B Vietsoul. Mas as raízes tinham ficado bem cravadas no solo e o punk tinha chegado para ficar.

Há algum pudor em reconhecer um papel ativo à cultura popular nas transformações sociais, mas os Aqui D’el Rock são um marco da história portuguesa. A sua criação assinala a aparição de uma nova linguagem, capaz de desafiar com vigor tradições e vícios culturais que a revolução não alterou suficientemente, e representa um novo patamar na democratização da música em Portugal, cuja explosão só chegaria em força nos anos 80, com o boom do rock português. A sua importância, contudo, não mereceu o destaque devido. O lugar que ocupam no panteão do punk em Portugal é incontestável, mas o seu significado é geralmente diluído no de outras bandas surgidas em simultâneo, e sem registos sonoros, como os Faíscas e os Minas & Armadilhas, cujos membros fizeram posteriormente carreira artística (ex: Pedro Ayres Magalhães, mentor dos Corpo Diplomático, Heróis do Mar e Madredeus) ou afirmaram com maior destaque a sua voz no espaço público (ex: Paulo Borges). Não fossem estes dois singles, há pouco reeditados, numa edição única, pela ZeroWork Records, e, provavelmente, os Aqui D’el Rock ocupariam uma nota de rodapé anda mais discreta. Pelo estatuto marginal que tinham na “movida” artística lisboeta então em ascensão, a burguesia da Avenida de Roma via os Aqui D’el Rock, já na altura, como oportunistas (significativamente, no primeiro concerto dos Aqui D’el Rock, os Faíscas forçariam a sua presença no evento, forjando uma invasão de palco para tocar) e, posteriormente, procurando firmar o seu pioneirismo, nunca deixaram de relativizar o estatuto punk da banda do Bairro do “Cambodja”. Para Rui Pregal da Cunha (Heróis do Mar, LX 90), o punk nem tinha grande nexo num país recém-saído de uma revolução (in A Arte Elétrica em Portugal, ep. 2); era uma imitação barata, uma moda importada que rapidamente viria dar lugar a outra, tal como demonstrava a passagem fugaz pelo estilo e o percurso multifacetado destes ilustres pioneiros.

Recordar os Aqui D’el Rock, e celebrar estes registos, é reafirmar o seu lugar na história do punk e da música em Portugal. Mas, talvez mais importante, é confrontar uma memória elitista da cultura nacional que costuma reservar às classes populares o papel de meros espetadores.

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