Entrevista com Xico Malheiro - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Entrevista com Xico Malheiro

Armando Sousa

Entrevista

12 Novembro 2021

"Todos tínhamos os nossos empregos, mas aos fins-de-semana íamos pelas aldeias e pedíamos às senhoras, no fim da missa, para cantar umas modinhas"
Natural de Vila Verde, Francisco Malheiro é um nome incontornável da música tradicional portuguesa, inevitavelmente indissociável do Grupo de Acção Cultural Raízes. Instrumentista multi-facetado entregue de corpo e alma à causa da música do povo, Xico conversou com a Fonoteca Municipal do Porto sobre como era recolher e divulgar a música tradicional nos anos oitenta.


Nos três discos em vinil do Grupo de Acção Cultural Raízes, além da música tradicional, há um outro denominador comum: Xico Malheiro.

Sim, apesar de eu não ter sido um dos fundadores do Raízes. A origem do grupo remonta a uma banda de garagem, que tocava rock pesado e a quem um grande amigo, o Dr. Martinho Gonçalves, propôs tocar algumas músicas num concerto comemorativo do 25 de abril, em 1980. O vocalista tinha um irmão mais velho que ouvia Zeca [Afonso], Adriano [Correia de Oliveira] e Fausto e eles lá aceitaram. Como não tinham instrumentos tradicionais, tiveram que pedir cavaquinhos e bandolins emprestados e imitavam o ritmo dos adufes com o tampo das guitarras, para acompanhar canções como a Milho Verde. Na verdade, era um grupo criado para desaparecer depois daquele concerto.

Naquela altura eu andava metido em tudo o que se relacionava com música e desporto em Vila Verde: fazia parte de uma equipa de atletismo e outra de futebol; tocava no coro da igreja; pertencia aos dois grupos folclóricos e ainda era comandante da fanfarra dos bombeiros. Quando uns meses mais tarde, depois daquele concerto em abril, me fizeram o convite para tocar no Raízes, deixei todas as minhas atividades para me dedicar ao grupo. Toquei o primeiro concerto com eles em setembro de 1980 e logo a seguir gravámos o primeiro LP, com o título Raízes.

Esse álbum, publicado pela Orfeu em 1982, inclui um pequeno texto onde, além do que nos acaba de contar, se fala de um “esforçado trabalho de recolha e divulgação da música tradicional portuguesa”. Inicialmente, a ideia do grupo é, portanto, a de revitalizar o cancioneiro tradicional.

O primeiro disco é totalmente composto por músicas tradicionais do Minho, de recolhas e outras coisas que as pessoas já tocavam e nós tocamos de maneira diferente. O segundo LP, O Diabo do Belho, já tem algumas canções de raiz tradicional mas da nossa autoria, nomeadamente um instrumental de cavaquinho composto por mim e dois temas do Firmino Neiva, um grande amigo que faleceu há uns meses atrás. A partir daí, sem sair do registo tradicional, o Raízes começou a tentar criar e compor. Nesse sentido, o álbum Caminho d’Água já é muito diferente dos outros dois.

Esse terceiro álbum já foi produzido pelo Júlio Pereira.

Sim, depois de preparar o disco com o Firmino, gravámos uma maquete que tinha muitos mais temas do que os que saíram depois no LP. Alguns até mais corriqueiros, como por exemplo um onde eu tocava o violino: os gatos até fugiam quando ouviam aquilo [risos].
Quando o Júlio Pereira nos foi apresentado por um amigo, mostrámos-lhe esse material e ele aceitou de bom grado produzir-nos o disco, que ia ser publicado pela Transmedia.

Mas que acabou por ser auto-editado?

Não, foi uma confusão. Quando o trabalho já estava pronto, a discográfica faliu. Nesse momento apareceu uma editora chamada Eurocartel, que parecia ter tudo menos conhecimentos a nível de indústria fonográfica. Claro que o disco passou totalmente despercebido. Além dos evidentes problemas de distribuição e promoção, as capas do LP foram impressas com um erro crasso na numeração das músicas. De resto, a nós deram-nos não sei quantos exemplares para venda, que facilmente vendemos. Para nós, que já tocávamos em grandes festivais, nos concertos era muito fácil vender discos.

Voltando à figura do recentemente desaparecido Firmino Neiva. Qual foi o percurso dele no Raízes?

O Firmino Neiva tinha ido para a Dinamarca para fugir à guerra colonial. Quando regressou a Braga, tocava viola num grupo de fados de Coimbra do qual também fazia parte o José Manuel Matos Cruz. Um dia, num evento no qual também participava o Raízes, foi convidado a integrar o grupo. O Firmino era um polivalente nas cordas: tocava muito bem baixo, guitarra clássica, bandolim, viola braguesa e dava um jeito no cavaquinho. E foi uma mais-valia porque, além de executar muito bem, era um criativo.

Um dos exemplos do talento dele é uma música chamada Quadrilha que eu tinha composto na altura das gravações do Diabo do Belho. Quando lha mostrei pela primeira vez, não lhe pudemos dar muita atenção e a música ficou guardada. Uns anos mais tarde, quando estávamos a preparar o Caminho d’Água, ele lembrou-se e perguntou-me pelo tal instrumental de cavaquinho. Voltamos a pegar na música, que o Firmino melhorou ao trocar alguns elementos, tornando-a aquilo que se pode ouvir no disco e que funcionava lindamente nos concertos.

E a recolha das músicas tradicionais?

Era aos domingos, com a gravadora Grundig às costas. Todos tínhamos os nossos empregos, mas aos fins-de-semana juntávamo-nos, íamos pelas aldeias e pedíamos às senhoras, no fim da missa, para cantar umas modinhas do tempo delas. Foi assim que apareceram canções como a Ribeira Qu’és Tamanha, que abre o segundo álbum do Raízes. Já a Música da Dança do Rei David, do primeiro disco, surgiu de uma colaboração com um grupo de senhores já com muita idade, para as festas do concelho: As Festas de Santo António. Dessa recolha também aproveitamos a Flor de Chá e a Patuscada.

No Diabo do Belho há um caso curioso: a Rosa Tirana. Em Vila Verde, ouvimos uma senhora a cantá-la e pareceu-nos lindíssima. Fizemos-lhe uns arranjos de flauta e quando a música já estava gravada e o disco pronto alguém disse: Oh pá, esta música é de um filme com o Vasco Santana [Canção de Lisboa]. A partir daí começámos a ter algum cuidado, porque as senhoras cantavam uma música do tempo delas, mas claro, cantavam porque ouviam na rádio e depois iam moldando as melodias ao ritmo do seu trabalho no campo.

Nos anos oitenta havia mais interesse do que há agora na música tradicional?

A partir de uma determinada altura, a música tradicional perdeu visibilidade nos meios de comunicação, sobretudo na televisão, onde ganharam mais espaço as concertinas e os corpos semi-nus. Ninguém vê a Brigada [Vitor Jara], nem o Raízes, nem os Vai de Roda; ninguém vê a música tradicional portuguesa, a música do povo. A televisão ainda tem uma influência muito grande nas pessoas e os contratos para os concertos fazem-se pelo que a televisão transmite.

Mas o Xico, independentemente das modas, continua a tocar sua música tradicional.

Nem de longe nem de perto, nada disto me tira vontade de tocar. Tenho colaborado com vários projetos e, recentemente, peguei nalguns temas e gravei um disco de música tradicional portuguesa. Felizmente, recebi telefonemas de pessoas que tiveram acesso ao álbum, a dizer que já há muitos anos que estavam à espera de ouvir algo assim.

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