29 Fevereiro 2024
"Um dia eu vou-me embora, mas ficam cá as canções."
No LP Adeus até ao Meu Regresso, presente na Fonoteca Municipal do Porto (FMP), agradece a inúmeras pessoas. Agradece a dezenas de músicos, jornalistas, familiares, a “todos os que cresceram comigo nos anos sessenta”, a “todos os que viveram comigo os anos setenta”. Agradece inclusivamente a todos os seus inimigos, porque “sem eles a amizade verdadeira não tinha significado". A criação musical foi para si também uma experiência social?
Quando eu agradeço a essas pessoas todas estou a ser grato a quem me ajudou a chegar onde cheguei. Sem elas não teria sido a mesma pessoa, não teria escrito as canções que escrevi e não teria feito o caminho que fiz.
Quando gravei esse álbum em 1982 estava convencido de que não ia gravar mais. Tinha chegado em 1979 à Polygram, onde era director do Departamento Artistas e Repertório. Tinha a responsabilidade de assinar os artistas e discutir com eles as canções que vão gravar, a capa do disco, os planos de promoção, de marketing… Com esse trabalho fui promovido a vice-presidente da companhia, com responsabilidades acrescidas, e pensei que a partir desse momento não faria sentido gravar mais discos. Esse seria o meu último disco, daí o título.
Adeus até ao Meu Regresso era uma frase usada pelas tropas quando partiam para o Ultramar, com a expectativa de que voltariam vivos e com saúde. Usei a mesma frase no sentido de que acabaria aí com a produção de discos, mas podia ser que um dia gravasse outra vez, pensava eu, daí a 20, 30, 40 anos. Na altura tinha 31 anos, era muito novo.
Mas sempre compôs.
Sempre. Sempre achei e acho que é perfeitamente compatível com quaisquer funções que tenhas. Podes ser administrador de uma empresa, engenheiro, sapateiro e ter uma atividade criativa nas horas vagas. No meu caso, não estava a concorrer contra os meus artistas, as pessoas que tinha que promover como editor.
Voltou às gravações com As noites íntimas de um hotel com estrelas, um disco que iremos abordar mais à frente.
Exatamente. Como foi pensado como banda sonora para um filme, achei que não iria concorrer em termos comerciais com nada daquilo que estava a editar. Com isto, fiquei 31 anos sem gravar, até 2011 ou 2012, quando já estava totalmente livre. Esse foi o meu regresso.
Outro disco seu que temos na Fonoteca é o Cantar de Amigos, cantado por si e pelo Paulo de Carvalho.
Esse é anterior, de 1979. Ainda eu estava em plena atividade. Os Gemini tinham acabado nesse ano, em Setembro, depois da tournée de Verão. Nessa altura a editora do Paulo de Carvalho, a Da Nova, lançou-me um desafio.
Eu queria assinar o Paulo, queria trazê-lo para a Polygram, e o Hugo Lourenço, um amigo nosso e sócio majoritário Da Nova, disse-me que para o Paulo sair eu teria que gravar um álbum em dueto com ele. Pensei: meu Deus, como é que eu vou fazer isso? Como é que vou gravar um álbum com o tipo que tem a melhor voz da minha geração?
Eu não sou propriamente um cantor. Cantava em grupos, cantei nos Gemini, nos Green Windows, no Quarteto 1111, onde tinha muita mais gente a cantar comigo. Cantar sozinho era uma experiência que eu praticamente não tinha, tinha experimentado em 2 ou 3 singles e num ou outro festival. Nunca me passou pela cabeça fazer carreira de cantor solista.
Felizmente, quando gravámos o álbum, bateu certo. Tendo ele uma voz 10 vezes mais forte do que a minha achei que não iria aguentar, mas aguentei. Quando ouves o disco não há um grande choque entre as duas vozes. Os timbres colam bem, o que é o mais importante. Cantamos a meias e também resulta. Foi aí que me convenci de que, não tendo eu uma voz por aí além, poder-me-ia defender cantando com alma e sentimento.
Tenho um timbre que as pessoas reconhecem, o que é uma vantagem, e tento dar um peso diferente às palavras. Foi isso que fiz nos discos que gravei.
Acho que o Cantar de Amigos funciona precisamente por causa do contraste dos dois timbres, seu e do Paulo de Carvalho.
Acho que o Cantar de Amigos funciona precisamente por causa do contraste dos dois timbres, seu e do Paulo de Carvalho.
Sim, por causa dos timbres mas também por causa do fraseado, a forma como partimos ritmicamente a canção. Se fôssemos parecidos seria mais monótono.
Dentro desta dicotomia cantor / criador, há na FMP 3 registos onde o Tozé é principalmente intérprete. São os singles com as canções dos desenhos animados da Abelha Maia, da Bana e Flapi e Jacky, o urso de Tallac. As músicas não são originais, só as letras. Como surgiram estes convites?
Foi uma fase muito divertida da minha vida. Era editor na Polygram (1978) e tínhamos essas edições. Os discos chegaram-nos com as versões alemãs e japonesas das canções. Era preciso “traduzir" as letras para português, batizando as personagens com outros nomes, adaptando criativamente as histórias e depois gravar as novas versões. Eu estava à mão e juntei algumas pessoas, a Fátima que cantava comigo nos Gemini, a Dina, que infelizmente já nos deixou, o Armando Gama dos Sarabanda, a Fernanda de Sousa, hoje a Ágata e que na altura cantava nas Cocktail, o Carlos Vidal, mais conhecido como Avô Cantigas, e mais uma data de gente que trabalhava comigo na Polygram.
Foi muito divertido. As canções infantis e juvenis têm esse lado bonito, ainda hoje há pessoas que vêm ter comigo e dizem “Sei cantar todas as canções da Abelha Maia!”. É uma recompensa bonita, constatarmos que ao fim de 40 e 50 anos estas canções continuam vivas na memória das pessoas. Agrada-me muito escrever canções intemporais, que as pessoas continuam a cantar passado tanto tempo.
Foi muito divertido. As canções infantis e juvenis têm esse lado bonito, ainda hoje há pessoas que vêm ter comigo e dizem “Sei cantar todas as canções da Abelha Maia!”. É uma recompensa bonita, constatarmos que ao fim de 40 e 50 anos estas canções continuam vivas na memória das pessoas. Agrada-me muito escrever canções intemporais, que as pessoas continuam a cantar passado tanto tempo.
Isso demonstra o potencial absoluto dessas músicas.
Quando as canções resistem ao tempo, alguma coisa foi bem feita. Isso não quer dizer que sejam necessariamente melhores do que outras, mas alguma coisa de especial se passou com a melodia, com a harmonia, letra, arranjo ou na maneira como foram integradas numa série de televisão, difundidas pela rádio ou num festival. Alguma coisa as tornou intemporais. Um dia eu vou-me embora mas ficam cá as canções. Acho que qualquer pessoa que escreve (canções) gostaria de poder dizer isso.
Qual é na opinião do Tozé a sua canção mais intemporal?
Não é fácil responder. Eu diria os 20 Anos, que escrevi com o José Cid, juntamente com o Amanhã de Manhã das Doce, com letra minha e música do Mike Sargent, e depois talvez o Olá, Então Como Vais? que cantei com o Paulo de Carvalho e o Papel Principal, que escrevi para a Adelaide Ferreira, letra e música minhas. Durante uns tempos ninguém prestou grande atenção à canção, mas uns anos mais tarde descobriram-na para uma telenovela e até hoje a encontras em qualquer karaoke.
E a entrada mais inusitada na sua obra?
E a entrada mais inusitada na sua obra?
A canção que foge mais da minha linha é provavelmente a Maria Criada, Maria Senhora, que compus em 1976 para o Festival do Canção, a convite do Carlos do Carmo. Nesse ano ele cantou todas as canções do Festival. Pouca gente a conhece, ficou em último lugar com zero pontos. O tema tinha cariz social e uma carga política, conta a história de uma rapariga que vem da província e vai parar a uma casa como empregada doméstica, onde acaba por ter uma relação sexual que a leva a se prostituir. Nunca tinha abordado esse tema, muito complexo e polémico, mas naquela altura atrevi-me a abordar. Estávamos em 1976, dois anos após o 25 de Abril, e as canções estavam quase todas muito politizadas, conscientes da realidade social que vivíamos e dos problemas que existiam. Apesar da canção estar totalmente fora da área onde me costumava mover, o Carlos adorou-a e quis cantá-la.
Fui bem castigado pelo júri, mas também tive o prazer de ver o Mário Castrim, um crítico de televisão feroz e implacável que escrevia no Diário de Lisboa, a tecer laudas à canção. Disse “Se isto não é a esquerda, onde está a esquerda?”. Foi uma maneira de apontar que o resto dos compositores (dessa edição do Festival) teve muito mais receio de ser contundente. Eu acabei por ser aquele que escreveu uma canção que chocou meio Portugal, e por causa disso tive a classificação que tive. Mas continua a ser uma canção que gosto muito de ouvir cantada pelo Carlos do Carmo.
Regressando ao registo As noites íntimas de um hotel com estrelas. Foi muito curioso constatar que se calhar criou o primeiro video-álbum produzido em Portugal.
É bem possível que tenha sido o primeiro. Fizemos um programa de televisão com 45 minutos e que tinha toda a música do álbum, 7 instrumentais e 4 canções com nomes de quartos e do bar. O álbum conta a história de uma pessoa que vai para o hotel e está a recordar tempos que viveu lá no passado. Esse era o guião do filme. Eu fiz a música, tanto a instrumental, que está sempre no fundo, como as canções baseadas na acção.
De onde veio a ideia para este projecto?
A ideia é minha. Fui eu que a apresentei à RTP, precisamente porque nunca tinha sido feito. Pensei, porque é que não se conta uma história com princípio, meio e fim, que não tenha 3 ou 5 minutos, o tempo de uma canção, mas 40 ou 45 minutos, o tempo de um álbum? Pensei num vídeo que também era o fio condutor para um conjunto de peças de música incidental e instrumental. Abria com a escadaria do hotel, depois a chegada à recepção e segue a ação presente no filme. Eu tive a ideia da estrutura da narrativa e achei que daria um bom programa de televisão.
Escrevi a música toda e gravei-a em maquete, em casa. Depois fui falar com a RTP, acho que com o Luís Andrade, um grande realizador que conhecia bem dos festivais da canção, que me encaminhou para o José Poiares, também realizador, e vendi-lhes a ideia. Eles gostaram e avançamos. É uma produção da RTP, está nos Arquivos, mas também no Youtube, dividido em 3 partes.
Sinceramente não sei se no estrangeiro alguém já tinha feito algo semelhante, mas não é possível saber. A ideia não me veio de ter visto uma coisa igual.
Ainda hoje o disco vale pelo conceito.
Sim, até porque em termos técnicos hoje far-se-ia muito melhor e com muita facilidade. O disco foi feito com duas câmaras, uma em tripé e outra às costas do cameraman, mais um tipo a tratar da iluminação e outro do som. Com 4 pessoas da RTP fizemos aquela pequena obra-prima, porque em 1987 fazer aquilo em 3 dias não era nada fácil. Foi preciso trabalhar muito bem e sem parar.
É um disco de que gosto muito e que ouço muitas vezes. Respira muito bem entre a música instrumental e as canções, mesmo sem a componente visual. É fácil de ouvir.
O subtítulo deste registo é Imagens Sonoras. Quantas das mais de 524 canções do Tozé são imagens sonoras?
O subtítulo deste registo é Imagens Sonoras. Quantas das mais de 524 canções do Tozé são imagens sonoras?
Eu diria que todas elas, sem excepção, são tradutíveis em imagens. Não consigo pensar em nenhuma canção que não o seja, porque nunca fui muito experimentalista com as palavras. Nunca fui esotérico. Sempre tentei que as letras fossem simples e dentro dessa simplicidade acho que todas as minhas canções contam histórias, umas mais visuais, outras com menos acção.
Quando estou a escrever canções há um aspeto que para mim é sagrado. Eu não posso estar a falar de elementos completamente etéreos e subjetivos. Não me posso deixar levar para esse lado. Há pessoas que o fazem muito bem, eu não.
A minha primeira preocupação quando escrevo uma letra é “vou contar uma história”, mesmo que seja curta. A partir do momento que estou a escrever um mini-guião para cada canção, porque ao contar uma história estou a escrever um mini-guião, todas elas são traduzíveis em imagens. Umas muito mais ricas, com mais contexto, outras mais simples. Eu gosto de contar uma boa história, até porque chego mais depressa às pessoas. E muito cedo me apercebi que quanto mais fácil for a história que conto, mais facilmente as pessoas se identificam. Esse é o segredo para se chegar a mais gente e das canções que são intemporais.