Entrevista com Paulo Flores - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Entrevista com Paulo Flores

André Forte

Entrevista

30 Setembro 2021

"Estou a tentar despertar os outros para o facto de, em Angola, termos feito um som incrível sem quase ninguém saber de som"
Paulo Flores é das figuras maiores da modernidade musical angolana e um nome que atravessa todos os géneros da música moderna do país, do semba da afirmação nacional ao rap, por via das suas inúmeras colaborações. É, também e por isso, um portal para 45 anos de Angola independente e para seis décadas de eletrizante produção musical, com as quais se ligou direta ou indiretamente ao longo de 30 anos carreira.

A Fonoteca Municipal do Porto tem alguns dos primeiros álbuns do Paulo Flores no seu arquivo, curiosamente, os últimos em vinil, também. O que mudou na sua carreira, além dos formatos em que lança?

A grande diferença é eu ter noção do que a minha carreira representa 33 anos depois. Cada vez que subo a um palco tenho a plena noção do que tenho para dizer. Nós somos o que a vida nos proporciona. Hoje já tenho dois netos, e nesses discos não tinha sequer um filho. O último disco que lancei em vinil foi o Coração Farrapo Cherry, e depois começámos a fazer CD. Aliás, o formato permitiu que no CD do Coração Farrapo Cherry houvesse algumas do Tunda Mu Njilla. Eram outros tempos.

Como foi gravar em Angola nos anos 80? Considera ter sido uma situação diferente do que era fazê-lo durante a ocupação colonial?

A música de Angola teve uma época de ouro, com uma sonoridade enorme, a década de 60 e 70. É o apogeu técnico da nossa musicalidade, com muita criatividade e produção. Quando eu comecei nos anos 80, com o Eduardo Paim na produção e muito inspirado no som das Antilhas, fui dos poucos que gravava em Angola, por causa da guerra. O Bonga, o Teta Lando e o Waldemar [Bastos] gravavam cá fora nessa época e pouco semba se fazia até eu enveredar por aí, em 1995. Agora existe muito mais produção, e o semba voltou a tomar destaque na nossa expressão. O Carlitos Vieira Dias disse: o semba, nós é que o estamos a fazer nos últimos 40 anos. Eu acho que ele tem razão.

Mencionou ter passado para o CD, e a sua carreira hoje em dia é feita nesse formato. Não o atrai o regresso do vinil?


Eu sempre tive uma relação afetiva com o vinil, porque o meu pai era DJ e tinha milhares de discos. Eu mais tarde fiquei com muitos deles. Ainda agora fiz a produção da Turma da Benção, que também tem muito a ver com o semba e a música instrumental, e aí essa ideia do vinil tem muita força. Tem a ver com ser uma obra mais histórica e querermos dar ao projeto uma visão mais retro, mas que também é a história da nossa vida. Como eu canto, no Semba Original, a história do meu pai a tocar nas festas e eu a dormir debaixo da mesa de DJ.

E o que representa o vinil, nesse contexto?

Representa essa memória de ser criança em Angola. Tenho tantas memórias que se ligam assim. Houve uma vez que o meu pai me deixou numa festa a tomar conta de uma cassete enquanto ele foi tocar noutra. Eu só tinha de mudar a cassete, mas gostava muito de uma música que lá estava, a Joaninha Namorada. Eu resolvi puxar a cassete para trás durante a festa para ouvir a música outra vez e estraguei a festa toda. O meu pai teve de voltar. Foi a minha primeira bandeira pública.

Considera que há um certo fetichismo com a música angolana de então que estagna a ideia do que o semba pode ser?

Eu acho que isso não vai estagnar em nada, pelo contrário. Tudo o que seja novas formas de voltar à essência é bom. Aquela música precisa de ser cada vez mais puxada para enquadrar tudo o que nós fazemos e vamos sempre chegar à conclusão de que aquilo é que é a música que nos representa. Eu vi isso com o Chullage no Avante, por exemplo, que tinha congas, o ferro do funaná e eletrónica, mas sempre sustentado na tradição. Estavam à procura de ter esta identidade. Se calhar, por isso mesmo, hoje consegues comer a melhor cachupa do mundo em Lisboa, ‘tás a ver?

E o que o fascina nesses tempos de música angolana?

Aquele som da fita com a força toda, os técnicos da altura, como o João Canedo… arrepio-me a pensar naquelas guitarras. Vai ser difícil repetir aquilo, pela forma como produzimos música hoje, com muito copy paste. Naqueles discos não acontecia isso. Às tantas aparece um baixo que ouves e achas que está mal, mas esse “mal” era a grande cena que nós tínhamos. Toda a gente corria riscos. Havia uma irresponsabilidade e uma vontade empírica de tocar que quebrava todas as barreiras.

Ainda hoje há uma admiração incrível pelo que se fez nessa época em Luanda… Influenciou-o nessa vontade de errar?

Há coisas que acontecem e que eu com o tempo fui percebendo que vêm daí. Às vezes estou a cantar e sinto que preciso de colocar uma palavra em certa nota e sou capaz de cortar o compasso ao meio. É como eles, antigamente. Quem toca comigo e me conhece, já sabe: tem de estar mesmo atento à minha letra, porque se vai à procura da lógica vai-se perder. Tem muito a ver com essa musicalidade do semba. É uma questão de agregar o que eu sei com o que eu ainda quero fazer. Estou a tentar despertar os outros para o facto de, em Angola, termos feito música sem saber música, termos feito um som incrível sem quase ninguém saber de som.

O Paulo Flores é uma figura agregadora, dos artistas do antigamente aos mais novos. O que é que permite que estes kuduristas, rappers, mestres de semba coexistam todos na sua música?

Tem a ver com a admiração que eu tenho por estas pessoas, principalmente com os mais kotas. São ícones, para mim. É como estar numa aula a ouvir o professor falar do Verdi, ou do Chopin. No meu caso, eu vejo os mestres a falar, tás a ver? É um privilégio.

Como surgem esses mais velhos na sua vida?

Eu conheci o Tio Carlitos [Vieira Dias] porque a mulher dele veio com junta médica para Lisboa (risos). Eu rio-me porque, agora, vejo que isto é uma coisa característica de Angola. Isto fez com que ele tenha ficado cá um ano e meio e começado a tocar comigo. Gravou comigo e começou a levar-me para o semba.
O kota Boto Trindade [os Bongos] foi outro com quem tive o privilégio de tocar. É um músico impressionante. Lembro-me de uma vez ter tocado no Cape Jazz Festival, na Cidade do Cabo, e levei-o comigo. No mesmo hotel que nós estava o George Benson. O tio Boto dizia-me: “ó Paulucho. Pô, o George Benson, ‘tá ali. É o meu herói.” E eu dizia-lhe: “Ya kota, não queres ir lá?” E ele não queria, que não sabia inglês. À noite tocámos no palco 2 do festival, e o Benson começava o concerto dele no palco 1 nos 10 minutos finais do nosso show. Parece que ele estava a ver o concerto à porta dos camarins dele, enquanto fumava. Quando chegamos ao hotel, à noite, o George Benson pede para chamar o kota Boto, man! E a dizer-lhe que ele era um guitarrista incrível. E é mesmo!

E os mais novos?

Por esses também há admiração, mas cada um tem o seu “porquê”. O Yuri [da Cunha] foi uma aproximação dele até eu sentir que havia ali uma amizade muito grande. E ele é um artista incrível. O Prodígio também. A Titica [kudurista trans angolana] era uma pessoa que ia a minha casa, e que eu via o talento dela, mas ao mesmo tempo havia preconceito, né? Vi o Facebook dela e havia gente a insultá-la, ameaçá-la… uma cena mesmo muito violenta e que se tornou uma questão de direitos humanos, para mim. Acabo por escrever uma música com ela sabendo eu que era o kota Paulo e que ia ter impacto. Levou muita gente a deixar esses comportamentos homofóbicos e transfóbicos e desmistificar preconceitos.

O Independência surge como celebração de 45 anos de Angola enquanto país, mas mantém uma componente de protesto vincada. Isto é um traço de angolanidade, esta maneira de descrever o quotidiano, ou do Paulo?

Angola tem essa história com a canção de protesto. E também teve a sua época das canções panfletárias, uma altura meio estranha, do Independência [do Teta Lando], até aos finais dos anos 70. Mas, neste último disco, tem muito a ver comigo, com o meu sentido crítico e a minha própria formação. O que me influenciava na música portuguesa eram os poetas de esquerda, que também tinham uma coisa de amor-ódio com a pátria, e o mesmo com o Brasil da altura da ditadura.

O Paulo está neste momento a colaborar com o DJ Marfox. Pode contar-nos mais desse encontro?

Isso é de uma série de projetos a serem desenvolvidos, também com o Dino [D’Santiago], que tem a ver com o Lisboa Crioula. Eles misturam dois artistas que têm a ver com Lisboa. Começou tudo comigo a mostrar ao Marfox, onde eu cresci, a minha cena. E ele mostrou-me a Quinta do Mocho e umas coisas lá. No final, fazemos uma masterclass, que passa por partilhar o nosso processo, em que ele faz um beat e eu faço um semba por cima. No fundo é dar a cara por essa Lisboa crioula e mostrar toda a diversidade. No nosso caso, era para ser só um documentário e a masterclass, mas a música está a ficar tão fixe que nós vamos gravar.

Para o futuro, o que está a preparar?

Estamos a desenvolver a Turma da Benção (Boto Trindade, o Teddy N’singi, Mayó, Galiano Neto, Joãozinho Morgado, Jéssica Pina e Armando GoBliss) para apresentar na Bienal de Luanda e depois disso lançar o vinil com as músicas todas, que até agora só saiu o single do Joãozinho Morgado. Vou com o Yuri fazer uns shows chamado “Os dois no Semba” em Angola, e que no próximo ano gostávamos de levar aqui pela Europa e depois aos Estados Unidos. Estamos à procura de fazer um roteiro de por onde passaram os escravos angolanos lá e irmos lá às comunidades e fazer essa ligação com a nossa musicalidade, levar o semba a essas comunidades e criar diálogo. Eles precisam desta história e nós precisamos que eles voltem às suas origens para nos darem experiência e know-how.
No final do ano espero fazer o vinil do Independência, que já está preparado, e que vai ficar bem bonito. E, como para o ano faço 50 anos, estou a trabalhar num disco de duetos com os meus amigos, com todas as músicas inéditas, feitas por nós.

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