Entrevista com Nuno Rebelo - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Entrevista com Nuno Rebelo

 Lia Pereira

Entrevista

01 Julho 2022

“Gosto muito de transgredir. Nos Mler Ife Dada, a nossa estética era o transgredir de fronteiras, dentro dos estilos musicais"
Membro fundador dos Mler Ife Dada e peça central do rock mais aventureiro dos anos 80 em Portugal, Nuno Rebelo dedica-se hoje à música improvisada e à composição para outras formas de arte, como a dança. O percurso dos Mler Ife Dada, que considera ter sido “difícil”, e o impacto duradouro de Coisas que Fascinam, disco de estreia da banda, lançado em 1987, foram alguns dos temas da generosa conversa com Nuno Rebelo.

Numa entrevista que deu em 2014, ao site Bodyspace, disse que ouvir música gravada passou a ser, para si, como ver fotografias de uma certa época…

A certa altura fiz uma reflexão sobre o fenómeno da gravação e aquilo que tinha de positivo e de negativo. De positivo tem muitas coisas, inclusivamente muito do meu trabalho de composição é feito com a gravação como ferramenta principal. Por outro lado, a gravação deu origem a uma certa mentira acerca da música. Antes da sua existência, para ouvir música as pessoas tinham de ir ver os músicos a tocar! Essa era a verdade da música, e continua a ser, mas as pessoas esqueceram-se. Quando estão no carro a ouvir uma orquestra sinfónica, nem se apercebem que uma orquestra não cabe no carro. E o mesmo [se aplica] a uma banda rock: estamos com os amigos a ouvi-la e baixa-se o botão do volume porque a música está a incomodar a conversa. E fica a um nível a que nem sequer é possível uma bateria tocar. Raramente as pessoas ouvem esse tipo de música tal qual ela soa, na sua verdade. Eu tive um primeiro divórcio da música pop-rock nos anos 90, e depois um divórcio com a gravação. Disse assim: não faço mais discos, não gravo mais nada. Só vou ver concertos e fazer concertos.

Antes desse divórcio, gravou vários discos, entre os quais Coisas que Fascinam, o primeiro álbum dos Mler Ife Dada. O que recorda dessas gravações?

Foram rapidíssimas! Gravámos o disco em três ou quatro dias, e num dia misturámos tudo. Hoje em dia, para misturar uma canção, demoro mais de um dia. Portanto foi tipo expresso. (risos) A minha ideia foi completamente errada: quis que o processo saísse o mais barato possível à editora, porque estávamos muito bem ensaiados e podíamos chegar a estúdio e rapidamente gravar o disco todo. Na altura, se um primeiro disco desse prejuízo, acabava-se a banda. Mas depois apercebi-me numa conversa, já não sei se com o manager do Rão Kyao ou com o do Sérgio Godinho, [que estava errado]. Um deles disse-me: “Isso é uma asneira dos diabos, o que interessa é que saia caro! Se puderes trazer um produtor estrangeiro, melhor! Se puderes contratar músicos de estúdio, melhor! Porque no fim, quando veem a conta, pensam: ‘Se isto não for disco de prata, temos prejuízo.' E por isso toca de pôr anúncios na televisão e fazer promoção à grande para recuperar o investimento.” Claro que nós [os Mler Ife Dada], se vendêssemos dois mil e tal discos, o álbum estava pago. Vendemos aqueles três mil discos e eles [a editora PolyGram] pararam a promoção!

Quando saiu dos Street Kids, foi o Jorge Lima Barreto a incentivá-lo a ouvir música clássica e world music. Viriam a ser coordenadas essenciais, depois, na viagem dos Mler Ife Dada?

Quando estava nos Street Kids, era companheiro de estrada de todas aquelas bandas: os Táxi, os UHF, os Roquivários, os Salada de Frutas, o Rui Veloso... fizemos dezenas, se não centenas de primeiras partes do Rui Veloso pelo país todo, na altura do seu primeiro disco, o Ar de Rock [de 1980]. Conheci os GNR, também. E tornei-me muito amigo do Vítor Rua. Quando os Street Kids entram numa espécie de desintegração provocada pela tropa – o guitarrista foi para a tropa, o vocalista foi para a tropa... –, os GNR estavam em remodelação e o Vítor convidou-me para entrar para a banda. Eu entrei, fiz três concertos com eles e gravámos um maxi-single que nunca saiu. E depois o Vítor sai dos GNR e eu saio com ele, e dá-se aquela guerra jurídica entre o Vítor Rua e os GNR. Isto para dizer que foi nessa altura e graças ao Vítor que eu comecei a frequentar a casa do Jorge Lima Barreto, que era um autêntico oásis musical! Na altura não havia internet; discos era só nas lojas e não havia tudo o que queríamos, tínhamos de importá-los, e em casa do Jorge Lima Barreto havia de tudo! Passávamos lá os dias a ouvir música e essa foi a minha entrada na idade madura.

Apesar de o som dos Mler Ife Dada ser muito singular, há sempre artistas contemporâneos com quem as bandas estabelecem cumplicidades. Quem eram os vossos “vizinhos” de estilo?

Com os Pop Dell'Arte tínhamos uma grande cumplicidade. Apesar de terem aparecido um ou dois anos depois dos Mler Ife Dada, imediatamente o João Peste me convidou para produzir os primeiros discos da sua banda [o single Sonhos Pop, o maxi-single Querelle/Mai 86 e o álbum Free Pop]. Eu participava muitas vezes nos concertos dos Pop Dell'Arte, convidei o Rafael Toral para o segundo disco dos Mler Ife Dada [Espírito Invisível, de 1989]... E com os GNR também havia cumplicidade. A primeira vez que vi a Anabela Duarte a cantar ao vivo foi num concerto dos GNR na Aula Magna [em Lisboa], em que ela foi cantora convidada, e foi ao Rui Reininho que pedi o contacto dela... depois convidámo-lo para cantar uma canção no nosso primeiro disco [Siô Djuzê]. Estes eram os grupos com os quais tínhamos mais cumplicidade. Com os GNR à direita, os Pop Dell'Arte à esquerda e nós ao centro. (risos)

Qual foi a primeira impressão que teve da Anabela Duarte?

A primeira vez que a vi cantar ao vivo foi nesse concerto dos GNR na Aula Magna e a sua entrada em palco foi uma coisa magnífica. A Anabela é um animal de palco maravilhoso. Nós já tínhamos tido dois cantores – o primeiro foi o Pedro d'Orey, que foi viver para o Brasil e deixou o grupo, e depois o Filipe Meireles, que fez alguns concertos e foi chamado para a tropa, síndrome que já tinha apanhado nos Street Kids... Eu estava à procura de um cantor e quando vi a Anabela pensei: “Porque não uma cantora?” Não me tinha sequer passado pela cabeça ser uma voz feminina, mas assim foi.

Hoje, em certas rádios, ainda se ouve uma das canções do disco, Zuvi Zeva Novi. Foi um êxito improvável?

Não foi um grande êxito. Nós víamos aqueles grupos que vendiam e estavam sempre na rádio, e nós nunca conseguimos. Bem gostávamos! Foi dificil, a nossa existência. Das canções dos Mler Ife Dada, essa é capaz de ser a mais conhecida, embora haja outras com as quais eu sinta que as pessoas têm uma ligação mais profunda, como Sinto em Mim ou Alfama. A Zuvi Zeva Novi é uma coisa mais leviana.

Porque diz que a vossa existência foi difícil?

Ao longo da nossa existência, tivemos quatro cantores. É facto que a Anabela foi a cantora do período áureo dos Mler Ife Dada. Mas tivemos dois cantores antes e uma cantora depois [Sofia Amendoeira]. Bateristas nem sei quantos é que fomos. Guitarristas houve um antes de mim e depois fui eu. Baixistas fui eu no primeiro disco e depois [o José António Aguiar] no segundo. A banda foi o contrário dos Xutos & Pontapés, que se mantiveram praticamente os mesmos desde sempre. Também era complicado arranjar sítio para ensaiar e nunca tivemos um manager que nos compreendesse. Tentavam sempre que fôssemos outra coisa que não éramos.

É considerado um dos pioneiros da internet em Portugal, por ter criado, ainda nos anos 90, um site no qual oferecia canções em MP3. Como vê a internet hoje em dia?

Olho para a internet como uma ferramenta, e tenho muita falta de paciência para ela. Já não tenho site. E devia ter! Quanto a redes sociais, entrei no Facebook há um ou dois anos e vou lá muito pouco. Acho que a internet é como a gravação: tem muitas coisas boas, mas também veio roubar muito do espaço privado das pessoas. Parece que estamos sempre obrigados a responder a mensagens e mails... às vezes dá-me vontade de me tornar eremita e ir para o meio da floresta! Em relação a ser pioneiro, o que se passou foi um acaso. Eu estava de férias no Algarve e conheci um engenheiro eletrotécnico, que me disse que na Alemanha estavam a desenvolver um novo formato de compressão de áudio: o MP3. Na altura, as músicas que eu punha no site eram em real audio, que era em mono e tinha uma qualidade horrível! Disseram-me: “Vai aparecer aí uma bomba, o MP3. É o Fraunhofer Institut na Alemanha que está a desenvolver, se quiseres passo-te o contacto.” E assim foi: mandaram-me um codificador, para eu passar os ficheiros wav para MP3, e um link para as pessoas poderem, no meu site, ouvir as músicas no leitor! Portanto, fui a primeira pessoa a oferecer ficheiros em Portugal: oferecia um MP3 por mês a quem visitasse o meu site.

Anos mais tarde, foi mesmo a partilha ilegal de música na internet a acabar com a indústria discográfica?

Bem vistas as coisas, até fico agradecido que a indústria acabe, graças aos MP3! Essa palavra aplicada à música dá-me arrepios. A música é uma arte com A grande, chamar-lhe indústria é horrível. Mas a mercantilização do produto musical gerou uma indústria e trata a música como um produto. A música enquanto forma de arte tem sofrido muito por via desse fenómeno do capitalismo. Portanto, quanto mais as grandes editoras enfraquecerem, mais ganha a música enquanto forma de arte!

Para terminar, a que projetos se tem dedicado?

Estou muito envolvido com música improvisada, enquanto guitarrista e não só. Mas não sou apologista dos discos – gosto de ver os concertos, e de tocar. De resto, continuo a fazer música para coreografias, agora vou fazer música para uma coreografia da minha mulher [Constanza Brncic]... E há um ano fiz música para uma peça da Vera Mantero, para a Companhia Dançando com a Diferença, do Funchal. Gosto de estar envolvido em coisas muito diferentes, senão a vida é um aborrecimento. Nem quero pensar o que seja a vida dos Rolling Stones, que toda a vida tocaram as mesmas canções! Gosto muito de transgredir, com a música. Nos Mler Ife Dada, a nossa estética era o transgredir de fronteiras, dentro dos estilos musicais. Depois a minha vida passou a ser a mesma coisa, mas mais aprofundada. Não só em relação aos diferentes estilos, mas também nas transgressões através da música e das outras áreas artísticas.

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