23 Abril 2024
“As minhas aulas de Aikido ensinaram-me a cantar, as bases do corpo, a postura e a respiração.”
Pensar na história do jazz português é também pensar no nome de Maria João. Cantora rebelde, de espírito livre e criatividade constante, é uma fonte de inspiração para muitas mulheres cantoras. Diz alimentar a sua criação em tudo o que a rodeia, mas as suas raízes africanas e as férias passadas nesse continente terão tido uma presença marcante na sua vida, que se encontra ao escutar o som da sua música. A força da sua voz é diretamente proporcional à sua intensidade interior. Ninguém fica indiferente à presença de Maria João. Dada a sua importância e destaque na música, a Fonoteca Municipal do Porto foi ao seu encontro, para dar a conhecer uma dimensão mais interior desta artista, cuja criatividade não tem limites.
Sem pensar demasiado, que sensações ou emoções lhe traz a palavra “música” no imediato?
Amor, liberdade de criação, dança…fazer música é liberdade e amor.
Qual o projeto em que esteve envolvida que a marcou mais?
Agarro todas as oportunidades ou possibilidades de fazer música, como é evidente. Não as perco nem por nada, só mesmo se eu não conseguir. Desistir de um concerto, para mim, é uma dor de alma. Contudo, claro que há projetos que são mais importantes, como o projeto com o Mário Laginha. Só o nosso duo, que depois criou a orquestra, também com trio, quarteto, quinteto, durou 26 anos, o que é incrível. Outro que é também muito importante é o projeto Ogre com o João Farinha, que me permitiu explorar o caminho da eletrónica, mundo pelo qual eu estava completamente apaixonada, desde a altura em que cantei com o Joe Zawinul e que o vi com toda aquela parafernália eletrónica ao redor. Sempre tive vontade de o fazer, mas não sabia como. Então, ao conhecer o João Farinha, isso passou a ser possível e foi muito bonito. É outra geração. Estes dois projetos são extremamente importantes para mim. Também voltei a cantar com o Carlos Bica, que é meu compadre desde há muitos anos, e fizemos um disco. Esse projeto também é muito importante, pela pessoa do Carlos Bica, pela música que fazemos. Mas eu diria que com o Mário Laginha e, mais recentemente, com o João Farinha são os projetos mais longos. Com o João Farinha já tem 14 anos e com o Mário, desde sempre.
Quando está a criar, qual é a parte ou momento em que se envolve mais? É a parte de pensar uma ideia, de a trabalhar na cabeça ou a parte do improviso e estar em palco?
É tudo. Faz tudo parte da criação. É muito importante para mim usar a minha criatividade. Eu gosto de carregar as minhas malas, de passar a minha roupa a ferro, gosto de tudo o que diz respeito ao concerto. Organizar também o palco para que a energia corra bem ao meu redor e não haja cabos por todo o lado, para que o espaço esteja harmonioso. Gosto de me ocupar de tudo. Também gosto de desenhar a roupa que visto. Acho que quanto mais usamos a nossa criatividade para tudo, para pequenas coisas à nossa volta, isso acaba por reverter para a música, o que é muito importante. Mas o meu lugar mesmo favorito é a altura de eu fazer a música, de poder usar a liberdade, de poder estar a criar. Eu sou uma improvisadora, amo improvisar, é quase a melhor parte da música, é a altura em que eu tenho liberdade para improvisar.
Mas acontece-lhe acordar com uma ideia musical na cabeça ou, por exemplo, ir passear e surgir-lhe algo?
Ah, mas eu estou sempre assim, tenho isso o tempo todo. Estou a fazer isto e estou com ideias, estou no supermercado e se calhar estou a cantar baixinho e nem reparo, só reparo quando as pessoas estão a olhar para mim. Tenho sempre ideias e vou gravando no meu telefone e depois desenvolvo-as ou não. E isso é uma gratidão que eu tenho ao universo, por me permitir essa abundância de ideias.
E tem algum tipo de limite ou de barreira em que pensa “para ali não vou”?
Não, não tenho absolutamente nenhum limite. Claro que dentro da música que eu considero música, que eu considero a aventura. Música que eu desconsidero enquanto música, que eu acho que é pior, embora possa ser maravilhosa para outras pessoas, apenas presto atenção para me dizer “ah, isto eu não vou fazer”. Porque é bom que nós saibamos fazer as coisas, saibamos o que é que gostamos e o que é que não gostamos, saibamos aprender com as duas coisas. Também há música que às vezes ouço e já não penso que não farei. Mas a pessoa pode aprender com tudo se tiver essa disponibilidade e essa abertura.
Como olha o mundo atual do jazz em Portugal comparativamente ao mundo de quando começou?Fazendo um certo paralelismo, embora sabendo que o paralelismo pode também ser algo que induza análises superficiais.
Naquela altura havia poucas escolas. Eu julgo que a única escola que havia era a do Hot Club, que era na cave do Hot. Durante a noite era club e durante o dia tinha apenas uma sala minúscula, com o bar dentro e a casa de banho no pátio. Esse lugar foi extremamente importante para mim durante seis meses, que foi o tempo que lá estive. Foi onde aprendi a conhecer as cantoras e as músicas. As pessoas achavam-me graça porque naquela altura não havia em Portugal cantoras de jazz, cantoras profissionais que fizessem apenas aquilo. Então, chegavam ao pé de mim e diziam-me “olha, isto é um disco da Ella Fitzgerald”, e a minha reação era… “uau”…, “esta é uma tal Billie Holiday”, e a minha reação era… “uau”…, “esta é uma tal Betty Carter”, e eu ai “morri”... Essa foi a minha aprendizagem, conhecer. Ouvir e conhecer os músicos, conhecer o ambiente. Toda a aproximação à música pode ser boa, seja através da escuta, seja através da aprendizagem mais académica, ou de qualquer outra maneira. Uma pessoa pode tornar-se músico de várias maneiras. Agora existem imensas escolas, existe um ensino mais regular em muitos lugares, quer seja ao nível do ensino profissional ou do ensino superior. As escolas de música proliferaram e há uma questão muito importante inerente a esse facto para quem dá aulas, pois o ensino da arte tem um lado criativo muito forte, sendo por isso muito diferente do ensino de disciplinas como matemática, ou mesmo de áreas como a medicina, embora seja claro que a criatividade esteja presente em todas as disciplinas. Mas, no ensino da música tem de se preservar a individualidade de cada músico, o ensino tem de ser personalizado, porque cada um é um mundo, tem as suas circunstâncias, e tem de ser ajudado, trabalhado individualmente. Esse cuidado é muito importante, de não generalizar e de não fazer do ensino da arte um ensino “standard”. Isso é sempre um desafio para quem ensina.
Considera que por hoje haver mais escolas e, em consequência, mais ensino da música, poderá correr-se o risco, se não se estiver atento, de criar uma espécie de fábrica de músicos “standard”?
Sim, como ouvimos em muitos lugares famosos, como por exemplo a Berkeley, que é tão conhecida, e acontece com muitos alunos. Embora a alguns deles isso não aconteça porque disparam. Mas esses disparariam de qualquer maneira, assim ou assado. Mas nessa escola acabam por ser muito “standardizados”, eles são muito parecidos uns com os outros. São muitos sabedores, muito sábios, sabem tudo acerca de música e mais alguma coisa, mas depois não se encontra a sua individualidade, o seu ADN….
… a sua essência …
… sim, a sua essência, procurar isso é um desafio. Agora também existem muitos mais concertos, porque quando eu comecei a cantar nós fazíamos um concerto de vez em quando. Ou seja, de vez em quando surgia uma hipótese, mas agora existem imensas possibilidades. Contudo, as impossibilidades de quando eu comecei a cantar foram, de algum modo, o que salvou a minha personalidade na música. Eu tive tempo para desenvolver e tive de procurar. Eu não tive aulas de canto. Até tentei e procurei alguns cantores que me pudessem dar algumas aulas, mas aquilo não funcionava para mim porque era muito estranho. Eu só depois compreendi porquê mais tarde. Porque eu fazia Aikido. Fiz Aikido por 40 e não sei quantos anos da minha vida e sou mesmo maluca por desporto e artes marciais. Fiz também Judo e Karate, apesar de por um período muito curto. Eu sentia-me desconfortável com os professores e com as professoras que eu tentava arranjar porque aquilo era estranho, porque eu já tinha o ensinamento, já tinha a base e a consciência, muito relacionado com a respiração. Quando se pratica Aikido adquire-se o conhecimento da base de cantar, ou seja, a consciência do corpo e da respiração. Essa consciência e relação é algo que tem de se fazer naquela e noutras artes. Tens de estar bem sentado na tua verticalidade e depois convidar, como convidada de honra, a respiração, que é o nosso principal instrumento, o fôlego, o sopro. E eu já tinha esse instrumento. Naquela altura as professoras, que eram do clássico pois não havia professoras de jazz, mal eu chegava à aula começavam logo de imediato a fazer vocalizes com arpejos. E eu pensava, sem ter consciência… “mas, e o corpo?! Então, mas… e respirar?!” Como para mim isso era estranho, acabava por deixar as aulas, ia lá três ou quatro vezes e ia-me embora porque não aprendia, não era isso que eu estava à procura. E só anos depois é que eu percebi que o meu grande mestre foi o Georges Stobbaerts. Foi ele que me transmitiu o conhecimento ligado à perceção e consciência do corpo, relação com a mente e a forma como isso se coloca no fôlego necessário para cantar. Na realidade, as pessoas a quem eu pedi aulas não me ajudaram, não pela sua incapacidade ou incompetência, nada disso, apenas porque eu vinha de outro lugar e já sabia aquela base. Acabei por desenvolver o resto individualmente. Eu própria fui à procura das minhas perguntas, das minhas respostas e agora posso afirmar que ninguém poderá dizer absolutamente nada acerca da forma como canto, porque eu conheço-me melhor enquanto cantora do que qualquer outra pessoa. Sabendo, claro, que cometo erros.
No fundo, é entrecruzar todos os saberes, todas as experiências que temos, todas as formas de arte.
Mas não só. Por exemplo, uma das coisas que mais me inspira é ver cinema, ver séries na televisão. Eu fico encantada e aquilo realmente inspira-me a nível da música, porque é tudo movimento, e a música é movimento, respiração, silêncio. Os atores fazem isso mesmo. Há filmes incríveis, com bons argumentos, séries absolutamente imperdíveis e que foram enormes inspirações. E uma pessoa mistura todas as suas experiências. Hoje em dia existe muita informação, tudo nos é dado e acabamos por não procurar por nós. Vamos consultar no Google, aqui e ali. Uma pessoa às vezes sente-se sufocada com tanta informação e, no meio dela, é muito importante descobrirmos o nosso caminho.
E quais são as suas influências?
Tudo o que eu ouço é uma influência para mim, no sentido do que fazer e do que não fazer. Todos os sons lá fora, os sons das vozes das pessoas. Acho que o meu primeiro amor é mesmo o som. Antes do significado da palavra, eu amo o som da palavra. Há tantas palavras absolutamente maravilhosas. Os ruídos lá fora, os ritmos dos pés no chão, as gargalhadas, as vozes das pessoas. E eu acho que talvez o segredo seja nós estarmos disponíveis para tudo e considerar que tudo é música. Existe música em todo o lado, ritmo em todo o lado, e é bom estarmos disponíveis para essa escuta do som.
E há algum artista que a tenha marcado?
Eh pá, tanta gente. A Betty Carter, por exemplo. Foi muito importante, falando de alguém lá nos começos. Ela é uma enciclopédia, sabia todas as coisas que nós queremos saber na música. Qualquer coisa. Tem um imenso repertório que gravou. Mas a Betty Carter marcou-me, de algum modo, por causa do seu amor pela aventura, por causa de não se preocupar em demasia com a perfeição. Acho que se usarmos o erro somos levados para caminhos onde não iriamos se tivéssemos tudo ensaiado, arranjado, planeado. Nem nunca perceberíamos as possibilidades de caminhar por esses lugares. O erro e a imperfeição são coisas fantásticas.
O erro é uma oportunidade…
É isso, é uma oportunidade incrível de caminhar por outros lugares.
Acha que a prática do desporto e a disciplina inerente a isso a ajudaram na sua atividade artística?
Fundamental. O desporto foi fundamental para mim. Foi também fundamental para a vida do meu filho, que é um atleta. Como eu disse há pouco, eu aprendi a cantar pelas aulas que eu fiz de Aikido. As minhas aulas de Aikido ensinaram-me a cantar, as bases do corpo, a postura e a respiração.
Na sua profissão, o que dá mais prazer à Maria João de hoje?
É criar, fazer concertos e dar concertos. É um momento de absoluta felicidade, absoluta aventura e absoluta dança com os outros. Em toda a minha vida acho que é realmente aquilo que mais amo fazer. Eu gosto da aventura da criação, é disso que eu gosto.
E tem a mesma sensação, ao entrar em palco, que tinha no início da sua carreira?
Absolutamente. O mesmo nervoso, o mesmo frenesim, a mesma adrenalina, o mesmo amor. É isso.
Sem pensar demasiado, que sensações ou emoções lhe traz a palavra “música” no imediato?
Amor, liberdade de criação, dança…fazer música é liberdade e amor.
Qual o projeto em que esteve envolvida que a marcou mais?
Agarro todas as oportunidades ou possibilidades de fazer música, como é evidente. Não as perco nem por nada, só mesmo se eu não conseguir. Desistir de um concerto, para mim, é uma dor de alma. Contudo, claro que há projetos que são mais importantes, como o projeto com o Mário Laginha. Só o nosso duo, que depois criou a orquestra, também com trio, quarteto, quinteto, durou 26 anos, o que é incrível. Outro que é também muito importante é o projeto Ogre com o João Farinha, que me permitiu explorar o caminho da eletrónica, mundo pelo qual eu estava completamente apaixonada, desde a altura em que cantei com o Joe Zawinul e que o vi com toda aquela parafernália eletrónica ao redor. Sempre tive vontade de o fazer, mas não sabia como. Então, ao conhecer o João Farinha, isso passou a ser possível e foi muito bonito. É outra geração. Estes dois projetos são extremamente importantes para mim. Também voltei a cantar com o Carlos Bica, que é meu compadre desde há muitos anos, e fizemos um disco. Esse projeto também é muito importante, pela pessoa do Carlos Bica, pela música que fazemos. Mas eu diria que com o Mário Laginha e, mais recentemente, com o João Farinha são os projetos mais longos. Com o João Farinha já tem 14 anos e com o Mário, desde sempre.
Quando está a criar, qual é a parte ou momento em que se envolve mais? É a parte de pensar uma ideia, de a trabalhar na cabeça ou a parte do improviso e estar em palco?
É tudo. Faz tudo parte da criação. É muito importante para mim usar a minha criatividade. Eu gosto de carregar as minhas malas, de passar a minha roupa a ferro, gosto de tudo o que diz respeito ao concerto. Organizar também o palco para que a energia corra bem ao meu redor e não haja cabos por todo o lado, para que o espaço esteja harmonioso. Gosto de me ocupar de tudo. Também gosto de desenhar a roupa que visto. Acho que quanto mais usamos a nossa criatividade para tudo, para pequenas coisas à nossa volta, isso acaba por reverter para a música, o que é muito importante. Mas o meu lugar mesmo favorito é a altura de eu fazer a música, de poder usar a liberdade, de poder estar a criar. Eu sou uma improvisadora, amo improvisar, é quase a melhor parte da música, é a altura em que eu tenho liberdade para improvisar.
Mas acontece-lhe acordar com uma ideia musical na cabeça ou, por exemplo, ir passear e surgir-lhe algo?
Ah, mas eu estou sempre assim, tenho isso o tempo todo. Estou a fazer isto e estou com ideias, estou no supermercado e se calhar estou a cantar baixinho e nem reparo, só reparo quando as pessoas estão a olhar para mim. Tenho sempre ideias e vou gravando no meu telefone e depois desenvolvo-as ou não. E isso é uma gratidão que eu tenho ao universo, por me permitir essa abundância de ideias.
E tem algum tipo de limite ou de barreira em que pensa “para ali não vou”?
Não, não tenho absolutamente nenhum limite. Claro que dentro da música que eu considero música, que eu considero a aventura. Música que eu desconsidero enquanto música, que eu acho que é pior, embora possa ser maravilhosa para outras pessoas, apenas presto atenção para me dizer “ah, isto eu não vou fazer”. Porque é bom que nós saibamos fazer as coisas, saibamos o que é que gostamos e o que é que não gostamos, saibamos aprender com as duas coisas. Também há música que às vezes ouço e já não penso que não farei. Mas a pessoa pode aprender com tudo se tiver essa disponibilidade e essa abertura.
Como olha o mundo atual do jazz em Portugal comparativamente ao mundo de quando começou?Fazendo um certo paralelismo, embora sabendo que o paralelismo pode também ser algo que induza análises superficiais.
Naquela altura havia poucas escolas. Eu julgo que a única escola que havia era a do Hot Club, que era na cave do Hot. Durante a noite era club e durante o dia tinha apenas uma sala minúscula, com o bar dentro e a casa de banho no pátio. Esse lugar foi extremamente importante para mim durante seis meses, que foi o tempo que lá estive. Foi onde aprendi a conhecer as cantoras e as músicas. As pessoas achavam-me graça porque naquela altura não havia em Portugal cantoras de jazz, cantoras profissionais que fizessem apenas aquilo. Então, chegavam ao pé de mim e diziam-me “olha, isto é um disco da Ella Fitzgerald”, e a minha reação era… “uau”…, “esta é uma tal Billie Holiday”, e a minha reação era… “uau”…, “esta é uma tal Betty Carter”, e eu ai “morri”... Essa foi a minha aprendizagem, conhecer. Ouvir e conhecer os músicos, conhecer o ambiente. Toda a aproximação à música pode ser boa, seja através da escuta, seja através da aprendizagem mais académica, ou de qualquer outra maneira. Uma pessoa pode tornar-se músico de várias maneiras. Agora existem imensas escolas, existe um ensino mais regular em muitos lugares, quer seja ao nível do ensino profissional ou do ensino superior. As escolas de música proliferaram e há uma questão muito importante inerente a esse facto para quem dá aulas, pois o ensino da arte tem um lado criativo muito forte, sendo por isso muito diferente do ensino de disciplinas como matemática, ou mesmo de áreas como a medicina, embora seja claro que a criatividade esteja presente em todas as disciplinas. Mas, no ensino da música tem de se preservar a individualidade de cada músico, o ensino tem de ser personalizado, porque cada um é um mundo, tem as suas circunstâncias, e tem de ser ajudado, trabalhado individualmente. Esse cuidado é muito importante, de não generalizar e de não fazer do ensino da arte um ensino “standard”. Isso é sempre um desafio para quem ensina.
Considera que por hoje haver mais escolas e, em consequência, mais ensino da música, poderá correr-se o risco, se não se estiver atento, de criar uma espécie de fábrica de músicos “standard”?
Sim, como ouvimos em muitos lugares famosos, como por exemplo a Berkeley, que é tão conhecida, e acontece com muitos alunos. Embora a alguns deles isso não aconteça porque disparam. Mas esses disparariam de qualquer maneira, assim ou assado. Mas nessa escola acabam por ser muito “standardizados”, eles são muito parecidos uns com os outros. São muitos sabedores, muito sábios, sabem tudo acerca de música e mais alguma coisa, mas depois não se encontra a sua individualidade, o seu ADN….
… a sua essência …
… sim, a sua essência, procurar isso é um desafio. Agora também existem muitos mais concertos, porque quando eu comecei a cantar nós fazíamos um concerto de vez em quando. Ou seja, de vez em quando surgia uma hipótese, mas agora existem imensas possibilidades. Contudo, as impossibilidades de quando eu comecei a cantar foram, de algum modo, o que salvou a minha personalidade na música. Eu tive tempo para desenvolver e tive de procurar. Eu não tive aulas de canto. Até tentei e procurei alguns cantores que me pudessem dar algumas aulas, mas aquilo não funcionava para mim porque era muito estranho. Eu só depois compreendi porquê mais tarde. Porque eu fazia Aikido. Fiz Aikido por 40 e não sei quantos anos da minha vida e sou mesmo maluca por desporto e artes marciais. Fiz também Judo e Karate, apesar de por um período muito curto. Eu sentia-me desconfortável com os professores e com as professoras que eu tentava arranjar porque aquilo era estranho, porque eu já tinha o ensinamento, já tinha a base e a consciência, muito relacionado com a respiração. Quando se pratica Aikido adquire-se o conhecimento da base de cantar, ou seja, a consciência do corpo e da respiração. Essa consciência e relação é algo que tem de se fazer naquela e noutras artes. Tens de estar bem sentado na tua verticalidade e depois convidar, como convidada de honra, a respiração, que é o nosso principal instrumento, o fôlego, o sopro. E eu já tinha esse instrumento. Naquela altura as professoras, que eram do clássico pois não havia professoras de jazz, mal eu chegava à aula começavam logo de imediato a fazer vocalizes com arpejos. E eu pensava, sem ter consciência… “mas, e o corpo?! Então, mas… e respirar?!” Como para mim isso era estranho, acabava por deixar as aulas, ia lá três ou quatro vezes e ia-me embora porque não aprendia, não era isso que eu estava à procura. E só anos depois é que eu percebi que o meu grande mestre foi o Georges Stobbaerts. Foi ele que me transmitiu o conhecimento ligado à perceção e consciência do corpo, relação com a mente e a forma como isso se coloca no fôlego necessário para cantar. Na realidade, as pessoas a quem eu pedi aulas não me ajudaram, não pela sua incapacidade ou incompetência, nada disso, apenas porque eu vinha de outro lugar e já sabia aquela base. Acabei por desenvolver o resto individualmente. Eu própria fui à procura das minhas perguntas, das minhas respostas e agora posso afirmar que ninguém poderá dizer absolutamente nada acerca da forma como canto, porque eu conheço-me melhor enquanto cantora do que qualquer outra pessoa. Sabendo, claro, que cometo erros.
No fundo, é entrecruzar todos os saberes, todas as experiências que temos, todas as formas de arte.
Mas não só. Por exemplo, uma das coisas que mais me inspira é ver cinema, ver séries na televisão. Eu fico encantada e aquilo realmente inspira-me a nível da música, porque é tudo movimento, e a música é movimento, respiração, silêncio. Os atores fazem isso mesmo. Há filmes incríveis, com bons argumentos, séries absolutamente imperdíveis e que foram enormes inspirações. E uma pessoa mistura todas as suas experiências. Hoje em dia existe muita informação, tudo nos é dado e acabamos por não procurar por nós. Vamos consultar no Google, aqui e ali. Uma pessoa às vezes sente-se sufocada com tanta informação e, no meio dela, é muito importante descobrirmos o nosso caminho.
E quais são as suas influências?
Tudo o que eu ouço é uma influência para mim, no sentido do que fazer e do que não fazer. Todos os sons lá fora, os sons das vozes das pessoas. Acho que o meu primeiro amor é mesmo o som. Antes do significado da palavra, eu amo o som da palavra. Há tantas palavras absolutamente maravilhosas. Os ruídos lá fora, os ritmos dos pés no chão, as gargalhadas, as vozes das pessoas. E eu acho que talvez o segredo seja nós estarmos disponíveis para tudo e considerar que tudo é música. Existe música em todo o lado, ritmo em todo o lado, e é bom estarmos disponíveis para essa escuta do som.
E há algum artista que a tenha marcado?
Eh pá, tanta gente. A Betty Carter, por exemplo. Foi muito importante, falando de alguém lá nos começos. Ela é uma enciclopédia, sabia todas as coisas que nós queremos saber na música. Qualquer coisa. Tem um imenso repertório que gravou. Mas a Betty Carter marcou-me, de algum modo, por causa do seu amor pela aventura, por causa de não se preocupar em demasia com a perfeição. Acho que se usarmos o erro somos levados para caminhos onde não iriamos se tivéssemos tudo ensaiado, arranjado, planeado. Nem nunca perceberíamos as possibilidades de caminhar por esses lugares. O erro e a imperfeição são coisas fantásticas.
O erro é uma oportunidade…
É isso, é uma oportunidade incrível de caminhar por outros lugares.
Acha que a prática do desporto e a disciplina inerente a isso a ajudaram na sua atividade artística?
Fundamental. O desporto foi fundamental para mim. Foi também fundamental para a vida do meu filho, que é um atleta. Como eu disse há pouco, eu aprendi a cantar pelas aulas que eu fiz de Aikido. As minhas aulas de Aikido ensinaram-me a cantar, as bases do corpo, a postura e a respiração.
Na sua profissão, o que dá mais prazer à Maria João de hoje?
É criar, fazer concertos e dar concertos. É um momento de absoluta felicidade, absoluta aventura e absoluta dança com os outros. Em toda a minha vida acho que é realmente aquilo que mais amo fazer. Eu gosto da aventura da criação, é disso que eu gosto.
E tem a mesma sensação, ao entrar em palco, que tinha no início da sua carreira?
Absolutamente. O mesmo nervoso, o mesmo frenesim, a mesma adrenalina, o mesmo amor. É isso.