Entrevista com Luísa Basto - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Entrevista com Luísa Basto

Mariana Duarte

Entrevista

03 Fevereiro 2021

‘Os meus pais ouviam-me cantar nas rádios clandestinas e não sabiam que era eu’
Luísa Basto é uma das cantoras injustamente esquecidas da música de intervenção portuguesa. Cria do Alentejo comunista, entrou para a clandestinidade aos 12 anos. Aos 13 foi para Moscovo, onde estudou canto e gravou canções revolucionárias, transmitidas para Portugal através da Rádio Portugal Livre e da Rádio Voz da Liberdade. De volta a Portugal logo depois do 25 de abril, colaborou com Ary dos Santos, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, deu um concerto de megafone com Adriano Correia de Oliveira, foi ao Festival da Canção com Os Amigos, cantou poemas de António Aleixo, Manuel da Fonseca, Eugénio de Andrade e Florbela Espanca. “Uma bonita canção de amor também é uma canção de luta”, diz-nos hoje, aos 73 anos.

Durante os anos 80 lançou vários discos, entre eles o single É Para Ti Mulher Esta Canção, que se tornou o hino do Movimento Democrático de Mulheres (no lado B encontra-se outro talismã, Recado para Angela Davis). Nas décadas seguintes, participou no musical Amália, de Filipe La Féria, gravou Tema de Amélia para a telenovela Roseira Brava e, entre muitas outras coisas, celebrou os 30 anos de carreira na Festa do Avante, pela mesma altura em que editava o disco Alentejo (2006). Apesar de injustamente esquecida, a voz poderosa de Luísa Basto foi justamente lembrada por Chullage em 2012, na canção Já Não Dá, onde se ouve um sample de Assim Como Quem Nasce. É a música de intervenção portuguesa a gostar dela própria.


Nasceu em Vale de Vargo, uma aldeia do concelho de Serpa. Foi lá que teve o seu primeiro contacto com a música?

Sim. O meu contacto com a música vem desde pequena. O meu pai e a minha mãe cantavam bem. Lembro-me que à noite, em casa, o meu pai cantava as canções do Luís Piçarra à lareira. Tinha uma voz de tenor. A minha mãe cantava aquelas canções populares alentejanas. Eu não me lembro, mas os meus pais diziam que eu andava sempre a cantarolar. A correr descalça pelas ruas de Vale de Vargo e a cantarolar.

Os seus pais só cantavam em casa? Ou pertenciam a um algum grupo da aldeia?

Cantavam também nos bailaricos e no Clube dos Pobres, mas nada sério. Havia dois clubes: um era frequentado pelos senhores agrários, depois havia outro em que o povo se juntava e onde chegou a atuar aquela grande acordeonista portuguesa, a Eugénia Lima. No Alentejo a gente vai a qualquer lado e canta, basta juntarem-se dois ou três.

Até quando é que viveu no Alentejo?

Eu acabei a quarta classe em Vale de Vargo e depois fui para a clandestinidade com os meus pais, aos 12 anos. Fui para uma casa do Partido Comunista Português (PCP). Estivemos por várias casas, em Lisboa, em Sintra e na Damaia, onde inclusive meus pais foram presos. Depois fui estudar para Moscovo.

Como é que isso aconteceu?

Eu trabalhava numa tipografia clandestina do partido, com os meus pais, e lia muito. Li alguns livros sobre a União Soviética. Um deles foi o Dez Dias Que Abalaram o Mundo, de John Reed, um jornalista americano que esteve na Rússia durante a Revolução Bolchevique. Aquele país fascinava-me. O partido perguntou se eu queria ir estudar para lá e eu aceitei. Foi lá que tive de mudar o meu nome para Luísa Basto: o meu nome de nascimento é Úrsula Lobato. Primeiro estudei a língua russa durante dois anos na Universidade Preparatória, ligada à Universidade de Moscovo. Na universidade havia várias iniciativas, como o Clube da Amizade Internacional, e eu andava sempre por lá a cantarolar. Um dia, a minha professora ouviu-me e disse: “Ó Luísa, podias participar num espectáculo". Ensaiei com um russo que tocava acordeão e cantei a Lisboa Antiga. Depois, ainda antes de começar a estudar música, gravei um disco que veio clandestinamente para Portugal, chamado Canções Revolucionárias Portuguesas, com música do [Fernando] Lopes-Graça e poemas do Manuel Alegre. Transmitiram as canções para Portugal através da Rádio Portugal Livre, que operava a partir de Bucareste, e da Rádio Voz da Liberdade, a partir de Argel. Depois entrei no Instituto Musical Superior do Estado.

Foi nessa altura que gravou, pela primeira vez, a canção Avante Camarada, do Luís Cília?

Sim, a primeira vez foi em Moscovo. É engraçado que os meus pais ouviam-me cantar nas rádios clandestinas e não sabiam que era eu. Só muito tempo depois é que os responsáveis do partido lhes disseram que era a filha deles.

Sempre lhe interessou cantar música de intervenção?

Eu nasci nesse ambiente. Desde pequenina que fui bebendo dessa água. Lembro-me de quando mataram a Catarina Eufémia, de quando a nossa aldeia foi cercada pela GNR a cavalo… O meu pai foi preso duas vezes, foram lá a casa buscá-lo… Portanto, nós vivíamos num ambiente de luta constante, até porque passávamos fome. De vez em quando a minha avó lá trazia um franguinho, uma galinha, mas o meu pai, juntamente com outros homens da aldeia, ia roubar fruta para os lados da Amareleja, a pé, calcorreando aqueles campos durante a noite para ter o que comer.

Ou seja, não fazia sentido cantar outro tipo de música.

Não. Aquilo era natural para mim. Era a minha vida. Mas depois do 25 de abril gravei outras coisas. Para mim, uma bonita canção de amor também é uma canção de luta, porque é uma canção de esperança. Eu e o João [Fernando, músico e companheiro de Luísa Basto] fomos de propósito ao Porto ter com o Eugénio de Andrade para lhe pedir autorização para gravar uns poemas dele.

Cantou também poemas de António Aleixo, Florbela Espanca, Manuel da Fonseca, Romeu Correia, entre outros. Para si, o que é que os ligava?

A qualidade e o conteúdo dos poemas. O Aleixo, por exemplo, não teve estudos praticamente nenhuns, mas é de uma sabedoria! É sabedoria popular. "Uma mosca sem valor/ Pousa com a mesma alegria/ Na careca de um doutor/ Como em qualquer porcaria", ou "À guerra não ligues meia/ Porque alguns grandes da terra/ Vendo a guerra em terra alheia/ Não querem que acabe a guerra". Isto a mim diz-me muito. É a realidade. E eu acho que temos de cantar coisas que nos digam alguma coisa, porque só assim se consegue cantar com alma.

Voltando um pouco atrás: passou uma temporada em Paris. Foi em exílio?

Não. Acabei o curso em Moscovo em 1973 e, em fevereiro de 1974, fui para Paris. Era para ficar lá, a trabalhar com os emigrantes, cantando... Mas felizmente aconteceu o que aconteceu em Portugal e então voltei. Voltei no dia 3 de Maio. Comecei a cantar mal cheguei cá, em todo o lado, em vários comícios... Foi uma loucura. Percorri o país inteiro e fui ao estrangeiro cantar para os emigrantes. Todos os dias aconteciam coisas novas. Foi um turbilhão de emoções e situações.

Nesse período do pós-25 de abril colaborou com que compositores e músicos?

Eu gravei canções do [Fernando] Tordo e do Paulo [de Carvalho], por exemplo, e fomos ao Festival da Canção com Os Amigos, em 1977. Entretanto conheci o João [Fernando] e comecei a gravar muitas coisas com ele. Mas o meu primeiro LP, Caminho e Canto [1980], tem muitos autores distintos.

Como surgiu esse álbum?


Depois do 25 de abril, eu ia cantar bastante ao estrangeiro. Fui com o João fazer uns espectáculos a França e trouxe 100 contos, o que na altura era muito dinheiro. O João disse para gravarmos um disco com aquele dinheiro. Gravámos um EP com duas canções, uma delas O Malhão do Meu País [1979]. Nessa altura fui à [editora] Telectra apresentá-lo e o responsável, o José Varatojo, virou-se para mim e disse: "A Luísa canta muito bem, mas tem um nome muito vermelho." Eu era conhecida por ter gravado o Avante e tal… Bem, fiquei danada e fiz uma coisa da qual me arrependi: passados uns dias fui cantar ao Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, e contei o que se tinha passado na Telectra. O pavilhão inteiro assobiou. Depois o senhor Varatojo falou comigo e abriu-me as portas todas. Foi aí que gravei o Caminho e Canto com grandes músicos de orquestra. Gravei muita coisa na Telectra, e só não gravei mais porque entretanto acabou.

Nessa altura conheceu o José Mário Branco e o José Afonso? Ou esses músicos mais conhecidos estavam noutro círculo?

Estavam num círculo mais à parte. E depois do 25 de abril houve uma grande luta entre as esquerdas… Mas eu cantei algumas vezes com o Adriano Correia de Oliveira. Uma vez fomos a uma coletividade no Alentejo e praticamente não tínhamos nada. A única coisa que havia era um megafone. O Adriano tocava viola e, quando ele cantava, eu punha o megafone na boca dele; quando era eu a cantar, ele punha o megafone na minha.

A Luísa ainda tocou ao vivo e lançou alguns discos durante os anos 2000, mas nos últimos tempos não tem cantado. Qual foi o seu último concerto?

Eu nunca fui um animal de palco, e os tempos mudam… O meu último concerto foi uma peça de teatro musical dedicada ao Romeu Correia na Academia Almadense, em 2017, com as canções que ele escreveu para mim. Agora só em coisas muito pontuais, em homenagem a algum poeta ou assim. Mas acho que ainda me desenrasco a cantar. Se surgir uma oportunidade que valha a pena, canto. Talvez este ano, no centenário do partido [PCP], pode ser que vá cantar a algum lado.

Mas ainda anda sempre a cantarolar, como quando era miúda?

Isso sim. Às vezes o João até diz "eh pá, já chega!" [risos].

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