06 Janeiro 2021
A história de Concha de Mascarenhas, que em dois 7” assinou como Conchinha, não é apenas a narrativa de uma intérprete. O seu percurso cruza-se com o de vários intervenientes incontornáveis para a historiografia e etnografia da jovem nação africana. Através de Conchinha ficamos a saber mais sobre o papel mulher angolana na música do país, sobre o semba, sobre o antigo Festival da Canção de Luanda, no qual registou várias participações, sobre o grupo de pioneiros N’gola Ritmos, que a acompanhou em estúdio e nas suas participações no evento, e sobre uma das principais compositoras da história de Angola, a sua irmã Ana Maria de Mascarenhas. A sua história, de forma inusitada, mas indelével, é também a de todas estas pessoas, grupos e eventos.
A sua presença em estúdio para gravar o 7” Melodia de Angola não foi inusitada. Foi, sim, porque Conchinha levou a canção Mulata é a Noite, que encerra o lado B da edição com selo Parlophone e prensagem portuguesa e sul-africana, ao primeiro prémio do Festival da Canção de Luanda de 1967. É o culminar da história de Concha, uma locutora de rádio, irmã de Ana Maria de Mascarenhas, a compositora, juntamente com o jornalista Adelino Tavares da Silva, da canção que lhe valeu a glória no incontornável evento da celebração da música popular angolana.
A dupla Mascarenhas-Tavares da Silva marcou o Festival e a sua história, e não é um acaso que Ana Maria tenha chegado a jurada do evento em 1969, um ano depois de decidir retirar-se da competição. Também ela cantora e intérprete, foi enquanto compositora e letrista que se afirmou. Da sua caneta e imaginação, saíram canções interpretadas por Sara Chaves (Maria Provocação valeu à intérprete o primeiro lugar do Festival e seria gravada por Conchinha mais tarde), Carlos Burity, Dionísio Rocha, Carlitos Vieira Dias e Martinho da Vila, para mencionar alguns.
Também os nomes Mascarenhas e N’gola Ritmos não são emparelhados ao acaso. Curiosamente, foi a banda fundada por Liceu Vieira Dias, considerado o fundador do semba luandino, pai de Carlitos Vieira Dias e tio de Ruy Mingas, que interpretou Maria Provocação e que acompanhou Concha no Festival e, mais tarde, no estúdio. Eram, e são, nomes fundamentais da música popular de Angola, que desde os anos 50 recolhiam a atenção das rádios e começavam a infiltrar o som da nação e as suas identidades nas elites da capital ultramarina.
Criado em 1947, o grupo N’gola Ritmos propôs-se a conciliar instrumentos europeus com ritmos e melodias angolanas. Foi pela sua popularidade entre nacionais, mas também através do contributo para a progressão melódica do género que o semba/rebita rompeu pela cidade de Luanda, com as canções em quimbundo a devolver o orgulho nacional a um povo oprimido pela metrópole colonial. É, aliás, atribuído a Liceu o trabalho de trazer para o cancioneiro nacional a música tradicional e de folclore, revitalizando uma tradição oral forte do povo e afinando-a para a modernidade, adaptando e aproximando a tradição aos formatos de canção e da música popular.
Estas canções, que cantava os problemas do povo mwangolé num dos seus dialectos mais falados, não existia sem revolução, e sem afirmação de um desígnio de nação e identidade que ultrapassava o Estado Novo e a narrativa ultramarina. Descrito como o “ritmo da clandestinidade”, o andamento dos N’gola Ritmos não vieram livres de problemas para os seus membros, tendo Liceu, assim como o membro fundador Amadeu Amorim, sido presos em 1959 pelo seu carácter de ativismo.
Não seria a prisão de dois fundados a levar à suspensão da atividade da banda e do seu percurso histórico. Parte dela fizeram alguns dos nomes femininos mais fundamentais da música angolana: Lourdes Van-Dúnem e Belita Palma. Falar da resistência na música dos N’gola Ritmos é, também, falar das mulheres que a cantaram. Mulheres estas que chegaram mesmo a deslocar-se à capital ultramarina para atuar e gravar com a banda, e que tomaram parte na definição do semba luandino, no som abrasivo nacional, e na psicadélia internacional. Na vida pós-N’gola Ritmos, tanto Belita como Lourdes gozaram carreiras solo com impacto além-fronteiras.
Melodias de Angola não é apenas um 7” com quatro canções — belas, por sinal. É um documento histórico da cultura angolana, da resistência nacional liderada por Agostinho Neto e Mário de Andrade, e da afirmação dos desígnios identitários tão bem articulados pelo líder intelectual e político do PAIGC, Amílcar Cabral: “não podemos esperar que a cultura africana avance a menos que ela contribua de forma realista para a criação das condições necessárias para essa cultura, por exemplo, com a libertação do continente.” É, também, reflexo de como esta resistência se infiltrava na cultura de Luanda, num alternar de rebita em quimbundo e de slows europeizados em português. Ora se ouve Angola e a sua história, ora se ouve as histórias dos mussekes que se queriam longe entre as elites brancas. Em Mulata é a Noite, sobre um desses slows Conchinha de Mascarenhas canta:
Como eu a noite nasceu mulata
Na escuridão da kubata [casa]
Mulata é pecado (...)
Mulata é distúrbio no musseke [bairro]
Mas o ritmo do semba atravessa-se em Maria Provocação, uma letra que pede a sensualidade da boa rebita:
Foi ela, foi ela, foi
Foi ela quem provocou toda a maka [problema] nos mussekes
Foi ela e esses muleques
Que estavam fora da combinação
Dessa barona que chamam Maria Provocação
Se em português, por um lado, se contava o corriqueiro, apelava ao entretenimento e à distração, por outro lado, o quimbundo, que as elites não entendiam, propagava as mensagens do povo e as canções que este queria dançar. Foi, aliás, pelo uso dos formatos europeizados que os N’gola Ritmos chegaram às festas na cidade — usando a história sobre o musseke em português para o deixar longe, mas cantando as suas história em quimbundo sobre ritmo rebita para os trazer bem para o âmago.
Não restam dúvidas: as frequências da libertação angolana dançavam-se em arranjos de semba. Subdivisões rítmicas a combater a indolência dos andamentos pautados na metrópole, guitarras soantes de dedilhados rendilhados que não hesitam a aparente dissonância, a teimar na não-repetição de motivos. Não foi esta a base para Concha de Mascarenhas ganhar o Festival da Canção de Luanda e gravar numa rodela de vinil a sua voz e o seu nome, lado a lado com o da sua irmã, mas é essa a história que se ouve nas suas melodias.
A sua presença em estúdio para gravar o 7” Melodia de Angola não foi inusitada. Foi, sim, porque Conchinha levou a canção Mulata é a Noite, que encerra o lado B da edição com selo Parlophone e prensagem portuguesa e sul-africana, ao primeiro prémio do Festival da Canção de Luanda de 1967. É o culminar da história de Concha, uma locutora de rádio, irmã de Ana Maria de Mascarenhas, a compositora, juntamente com o jornalista Adelino Tavares da Silva, da canção que lhe valeu a glória no incontornável evento da celebração da música popular angolana.
A dupla Mascarenhas-Tavares da Silva marcou o Festival e a sua história, e não é um acaso que Ana Maria tenha chegado a jurada do evento em 1969, um ano depois de decidir retirar-se da competição. Também ela cantora e intérprete, foi enquanto compositora e letrista que se afirmou. Da sua caneta e imaginação, saíram canções interpretadas por Sara Chaves (Maria Provocação valeu à intérprete o primeiro lugar do Festival e seria gravada por Conchinha mais tarde), Carlos Burity, Dionísio Rocha, Carlitos Vieira Dias e Martinho da Vila, para mencionar alguns.
Também os nomes Mascarenhas e N’gola Ritmos não são emparelhados ao acaso. Curiosamente, foi a banda fundada por Liceu Vieira Dias, considerado o fundador do semba luandino, pai de Carlitos Vieira Dias e tio de Ruy Mingas, que interpretou Maria Provocação e que acompanhou Concha no Festival e, mais tarde, no estúdio. Eram, e são, nomes fundamentais da música popular de Angola, que desde os anos 50 recolhiam a atenção das rádios e começavam a infiltrar o som da nação e as suas identidades nas elites da capital ultramarina.
Criado em 1947, o grupo N’gola Ritmos propôs-se a conciliar instrumentos europeus com ritmos e melodias angolanas. Foi pela sua popularidade entre nacionais, mas também através do contributo para a progressão melódica do género que o semba/rebita rompeu pela cidade de Luanda, com as canções em quimbundo a devolver o orgulho nacional a um povo oprimido pela metrópole colonial. É, aliás, atribuído a Liceu o trabalho de trazer para o cancioneiro nacional a música tradicional e de folclore, revitalizando uma tradição oral forte do povo e afinando-a para a modernidade, adaptando e aproximando a tradição aos formatos de canção e da música popular.
Estas canções, que cantava os problemas do povo mwangolé num dos seus dialectos mais falados, não existia sem revolução, e sem afirmação de um desígnio de nação e identidade que ultrapassava o Estado Novo e a narrativa ultramarina. Descrito como o “ritmo da clandestinidade”, o andamento dos N’gola Ritmos não vieram livres de problemas para os seus membros, tendo Liceu, assim como o membro fundador Amadeu Amorim, sido presos em 1959 pelo seu carácter de ativismo.
Não seria a prisão de dois fundados a levar à suspensão da atividade da banda e do seu percurso histórico. Parte dela fizeram alguns dos nomes femininos mais fundamentais da música angolana: Lourdes Van-Dúnem e Belita Palma. Falar da resistência na música dos N’gola Ritmos é, também, falar das mulheres que a cantaram. Mulheres estas que chegaram mesmo a deslocar-se à capital ultramarina para atuar e gravar com a banda, e que tomaram parte na definição do semba luandino, no som abrasivo nacional, e na psicadélia internacional. Na vida pós-N’gola Ritmos, tanto Belita como Lourdes gozaram carreiras solo com impacto além-fronteiras.
Melodias de Angola não é apenas um 7” com quatro canções — belas, por sinal. É um documento histórico da cultura angolana, da resistência nacional liderada por Agostinho Neto e Mário de Andrade, e da afirmação dos desígnios identitários tão bem articulados pelo líder intelectual e político do PAIGC, Amílcar Cabral: “não podemos esperar que a cultura africana avance a menos que ela contribua de forma realista para a criação das condições necessárias para essa cultura, por exemplo, com a libertação do continente.” É, também, reflexo de como esta resistência se infiltrava na cultura de Luanda, num alternar de rebita em quimbundo e de slows europeizados em português. Ora se ouve Angola e a sua história, ora se ouve as histórias dos mussekes que se queriam longe entre as elites brancas. Em Mulata é a Noite, sobre um desses slows Conchinha de Mascarenhas canta:
Como eu a noite nasceu mulata
Na escuridão da kubata [casa]
Mulata é pecado (...)
Mulata é distúrbio no musseke [bairro]
Mas o ritmo do semba atravessa-se em Maria Provocação, uma letra que pede a sensualidade da boa rebita:
Foi ela, foi ela, foi
Foi ela quem provocou toda a maka [problema] nos mussekes
Foi ela e esses muleques
Que estavam fora da combinação
Dessa barona que chamam Maria Provocação
Se em português, por um lado, se contava o corriqueiro, apelava ao entretenimento e à distração, por outro lado, o quimbundo, que as elites não entendiam, propagava as mensagens do povo e as canções que este queria dançar. Foi, aliás, pelo uso dos formatos europeizados que os N’gola Ritmos chegaram às festas na cidade — usando a história sobre o musseke em português para o deixar longe, mas cantando as suas história em quimbundo sobre ritmo rebita para os trazer bem para o âmago.
Não restam dúvidas: as frequências da libertação angolana dançavam-se em arranjos de semba. Subdivisões rítmicas a combater a indolência dos andamentos pautados na metrópole, guitarras soantes de dedilhados rendilhados que não hesitam a aparente dissonância, a teimar na não-repetição de motivos. Não foi esta a base para Concha de Mascarenhas ganhar o Festival da Canção de Luanda e gravar numa rodela de vinil a sua voz e o seu nome, lado a lado com o da sua irmã, mas é essa a história que se ouve nas suas melodias.