A arte de dizer o Fado - Fonoteca Municipal do Porto

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A arte de dizer o Fado

Armando Sousa

Percurso

26 Setembro 2020

Os poetas que fizeram de Alfredo Marceneiro, cantador
Cumpriu-se recentemente o 50º aniversário da estreia na RTP do documentário Marceneiro é só fado. Durante alguns dos muitos interlúdios, Alfredo Marceneiro, entrevistado por Henrique Mendes, defende a importância da poesia e do trabalho do poeta no fado.
Naturalmente, os depoimentos do histórico fadista aos seus 77 anos trazem consigo todo o peso de tempos passados, representado pelo fado que se cantava e tocava no início do século XX, quando os poetas populares eram ainda os seus principais letristas.

Este documentário não foi o único veículo que o fadista utilizou para reivindicar a importância do poeta popular no seu fado e a sua ligação a um público que, segundo as suas próprias palavras, com os anos, foi perdendo o interesse pela letra.
Na mesma década do filme realizado por Luís Andrade, Alfredo Marceneiro decidiu finalmente aceitar os insistentes convites da Columbia para gravar um disco. Conta-se que para ele, que tinha que ver o que estava a cantar, a presença do arsenal de máquinas do estúdio era tão intimidante, que preferiu interpretar aqueles fados com o seu lenço a vendar-lhe os olhos.
No disco, gravado e publicado sob o nome O fabuloso Marceneiro no início dos anos 60, entre os 12 fados escolhidos do seu repertório, Alfredo Marceneiro canta três poemas de Linhares Barbosa: Lembro-me de ti, Mocita dos caracóis e O leilão.

Fui de viela em viela
Numa delas, dei com ela
E quedei-me enfeitiçado...
Sob a luz dum candeeiro,
S'tava ali o fado inteiro,
Pois toda ela era fado.


De todos os poetas preferidos por Alfredo Marceneiro, João Linhares Barbosa, conhecido como o “Príncipe dos poetas”, é quem mais se destaca como personagem indissociável ao curso do fado durante o início do século XX. Não só pelo seu trabalho como lirista, mas também pelo labor que desempenhou na defesa do fado perante os seus detratores, Linhares Barbosa teve no jornal Guitarra de Portugal, do qual foi fundador, um importante instrumento para a reabilitação e reivindicação do fado e dos fadistas.
Outro poeta popular admirado e cantado por Alfredo Marceneiro, Carlos Conde, escreveu o epitáfio à morte de João Linhares Barbosa quando este morreu em 1965, na Lisboa onde tinha nascido 72 anos antes:

A fadistagem chora, anda saudosa
Pela falta do seu vate consagrado.
A morte de João Linhares Barbosa
Roubou-nos meio século de fado!


Apesar de que em O fabuloso Marceneiro o fadista não canta qualquer letra de Carlos Conde, é sabida a admiração deste pelo poeta popular nascido em Aveiro em 1901. Passada uma década daquela primeira incursão patrocinada pela Columbia, Alfredo Marceneiro gravaria vários fados com os poemas de Conde, que fariam parte do seu curto repertório discográfico. Assim, o disco Nos tempos em que eu cantava inclui Domingo d’Agosto, um fresco do imaginário que resume bem as preocupações daquele poeta popular com a representação lírica de “tudo o que tenha vida, que tenha alma”.

À tarde encheram-se as hortas
Das mesmas gentes bizarras
E só se ouviam guitarras
Nas tascas fora de portas;
Só alta noite, horas mortas
Após o terço vibrado
Saiu o povo encantado
Ébrio de imensa alegria
Só porque naquele dia
Houve alma, toiros e fado.


Em 1924, no jornal Alma de Portugal escrevia-se que Carlos Conde “não sendo contudo um consagrado é no entanto um novel com inspiração, a sua obra encontra-se espalhada nas mãos dos mais competentíssimos cantadores.”

Quando questionado por Henrique Mendes sobre os seus poetas populares favoritos e antes da breve e reticente referência a Carlos Conde, é a Henrique Rêgo que Marceneiro dedica as palavras mais elogiosas: “Gosto mais de lirismo e o mais lírico foi o Henrique Rêgo.”

Anda a brisa, com desvelo,
Perfumada a lúcia-lima,
A saltitar-lhe por cima
Dos anéis do seu cabelo.
Abençoado modelo
De mulher da minha raça!...
Pois toda a gente que passa
Olha os céus e diz ao vê-la,
A menina é uma estrela
Toda vestida de cassa.


Estes versos de Menina do mirante são cantados sobre a mesma estrutura musical de fado corrido que se pode ouvir noutras composições de Marceneiro, como em Mariquinhas ou em Moinho desmantelado, outro poema de Rêgo.
Defende Alfredo Marceneiro que cada letra tem uma expressão e impõe um estilo próprios, independentemente da música. Assim, reivindica o papel do poeta popular, para Marceneiro encarnado em Henrique Rêgo, como fonte de inspiração. Prova disso é a quantidade de letras deste autor nos discos já referidos: Amor de mãe, A menina do mirante, O lenço e o Bêbedo pintor em O fabuloso Marceneiro; Tricana, Oh águia e Três tabuletas em Nos tempos que eu cantava.
A relação dos dois, Rêgo e Marceneiro, poeta e cantador, transcendeu o fado: eram compadres. E, se no documentário Marceneiro é só fado, o fadista manifesta a sua admiração pelo poeta, muitos anos antes Henrique Rêgo escrevera os seguintes versos:

Como existe compadrio
Entre mim e «Marceneiro»,
O meu maior elogio
É dizer, abertamente,
Que este fadista afamado
Inebria toda a gente
Que gosta de ouvir o Fado!


Para Alfredo Duarte, também Marceneiro, no fado "é preciso saber dizer”. Foi nessa relação entre as palavras e a música que compôs e cantou a poesia popular. Foi nessa expressão que reivindicou o trabalho do Poeta.

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