1957: O ano em que Miles Davis “explodiu” - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

1957: O ano em que Miles Davis “explodiu”

José Carlos Fernandes

Percurso

15 Outubro 2021

Miles Davis teve um início de carreira fulgurante: em 1945, com apenas 19 anos começou a tocar em clubes de Nova Iorque com Coleman Hawkins e Eddie “Lockjaw” Davis; pouco depois da sua primeira sessão de estúdio, com a banda de Herbie Fields, foi chamado a integrar a banda do seu ídolo, Charlie Parker, participando nalgumas sessões pioneiras do bebop, ao lado de Dizzy Gillespie e Max Roach; aos 21 registou a primeira sessão como líder de um All Stars que incluía Charlie Parker, John Lewis e Nelson Boyd; aos 22, já com experiência nas big bands de Billy Eckstine e Dizzy Gillespie, recebeu uma proposta para se juntar a uma big band ainda mais prestigiada: a de Duke Ellington.

Ao contrário do que seria expectável, Miles recusou esta oferta, pois, ao mesmo tempo que continuava a tocar no quinteto de Parker (com o qual registou várias sessões marcantes para a Savoy e para a Dial), começara a delinear um peculiar noneto, que contava com três dos mais criativos arranjadores do jazz, Gil Evans, Gerry Mulligan e John Lewis. Foi com esta formação que gravou, em janeiro e abril de 1949 as lendárias sessões para a Capitol que ficariam, depois, conhecidas como The birth of the Cool, que, como o nome sugere, se tornaram num paradigma do cool jazz. Ou seja, em 1949, com apenas 23 anos, Davis afirmara-se na linha da frente das duas principais correntes do jazz e era respeitado e elogiado pelos seus pares e pela crítica.

Porém, a inevitabilidade dos destinos é uma ilusão criada pela visão retrospetiva e a verdade é que, nos dois anos seguintes, a carreira de Miles, em vez de prosseguir a ascensão até à estratosfera, entrou em queda e poderia ter-se desvanecido ingloriamente. A culpa foi da dependência da heroína, que não só era um vício muito dispendioso e deixou Miles em situação financeira periclitante, como o fez tornar-se indisciplinado e desleixado e lhe custou até ser detido por posse de drogas (um evento foi amplamente noticiado, o que lhe tornou ainda mais difícil encontrar trabalho).

A recuperação deste mergulho começou quando a editora Prestige lhe propôs um contrato em 1951, mas a verdade é que os discos que, em 1951-53, gravou para a Prestige – The New Sounds, Young Man with a Horn, Blue Period, The Compositions of Al Cohn e Dig (só editado em 1956) – tal como as sessões para a Blue Note – Miles Davis volume 1-3 – não estão entre as suas obras mais conseguidas, pese embora os sidemen representarem a fina flor do jazz de então.

O regresso de Miles à sua melhor forma veio com as sessões que registou a 3 e 29 de abril de 1954 e que viriam a dar origem, três anos depois, ao LP de 12 polegadas Walkin’. Em 1954, o LP de 12 polegadas, que fora introduzido pela Columbia em 1948, ainda estava reservado à música clássica e o jazz recorria sobretudo ao LP de 10 polegadas e foi neste formato que foram lançadas, poucos meses depois, as sessões de abril: a de dia 29, com o título Miles Davis All Star Sextet (PRLP 182) e com J. J. Johnson (trombone), Lucky Thompson (saxofone tenor), Horace Silver (piano), Percy Heath (contrabaixo) e Kenny Clarke (bateria) e as faixas Walkin’ e Blue ‘n’ boogie; a de dia 3 com o título Miles Davis Quintet (PRLP 185) e com David Schildkraut (saxofone tenor) e a mesma secção rítmica e as faixas Solar, You Don’t Know What Love Is e I’ll Remember April.

As gravações foram realizadas no estúdio que Rudy Van Gelder montara na casa dos pais, em New Jersey, são monofónicas (a estereofonia só de implantaria em 1957), mas têm uma sonoridade nítida e natural, com bom equilíbrio entre instrumentos – a Prestige parece ter ficado agradada, pois passou a requisitar regularmente os serviços de Van Gelder. A faixa Walkin’ toma todo um lado do LP de 10 polegadas, mas os seus 13’26 deslizam sem esforço, impelidos por um swing descontraído e elástico (que na época era rotulado de funky) e pelos solos inspirados de Miles, Johnson, Thompson, Silver (refrescantemente anguloso) e novamente Miles. Solar dá a ouvir Miles com surdina e na sua faceta intimista e pausada. Schildkraut, que teve na sessão com Miles a 29 de abril, o único momento sob os holofotes numa carreira passada na obscuridade, revela-se fluido, assertivo e à altura dos seus bem mais famosos parceiros.

Ainda em 1954, uma sessão gravada a 24 de dezembro, com Milt Jackson (vibrafone), Thelonious Monk (piano) e novamente com Percy Heath e Kenny Clarke, produziu mais música de alto nível, lançada em 1955 sob a forma de dois LP de 10 polegadas, Miles Davis All Stars volume 1 & 2. Todavia, as restantes gravações de 1954-55 – Miles Davis with Sonny Rollins, The musings of Miles, Blue moods – voltaram a ficar abaixo do que seria de esperar de Davis e dos restantes intervenientes.

No verão de 1955, George Avakian, da Columbia, que ficara bem impressionado pela atuação de Miles no Festival de Jazz de Newport, propôs ao trompetista um contrato bem mais vantajoso do que aquele que o vinculava à modesta Prestige, mas impôs uma condição: Miles teria de arranjar uma banda permanente, em vez das formações flutuantes que liderara desde 1951. No acordo estabelecido entre as duas editoras, a Columbia comprometeu-se a não editar discos de Miles enquanto este não cumprisse os termos do contrato com a Prestige. Mas, depois de, em setembro de 1955, Miles ter montado um novo quinteto com John Coltrane (saxofone tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Philly Joe Jones (bateria), o trompetista despachou o contrato com a Prestige num ápice, gravando Miles: The New Miles Davis Quintet (a 16 de novembro de 1955) e a “tetralogia” Cookin’, Relaxin’, Workin’ e Steamin’, resultante de apenas duas sessões, a 11 de maio e 26 de outubro de 1956. Entretanto, em junho e setembro desse ano, o mesmo quinteto registara, para a sua nova editora, o grosso do que viria ser o álbum ‘Round about midnight.

1957 foi um ano decisivo na carreira de Miles, uma vez que nele coincidiram seis edições e reedições cruciais. O LP de 12 polegadas afirmara-se rapidamente como o novo padrão da indústria discográfica, pelo que a Prestige rearrumou os 10 polegadas Miles Davis All Star Sextet (PRLP 182) e Miles Davis Quintet (PRLP 185) no 12 polegadas Walkin’ (Prestige PRLP 7076), trocando a faixa I’ll remember April por Love me or leave me, uma “sobra” (inédita) da mesma sessão. Os 10 polegadas Miles Davis All Stars volume 1 & 2 foram alvo de operação análoga e deram origem ao 12 polegadas Bag’s groove. A este reempacotamento do melhor da colheita de 1954, a Prestige somou o primeiro disco do novo quinteto com Coltrane, Cookin’. Pelo seu lado, a Capitol reeditou as sessões em noneto de 1949-50 em 12 polegadas, com o título que ficaria para a história, Birth of the Cool, e a Columbia lançou o álbum ‘Round about midnight, que ficara na gaveta a aguardar o termo do contrato com a Prestige, bem como Miles Ahead, um novo disco registado em maio e agosto de 1957 com uma orquestra de 19 músicos meticulosamente arranjada por Gil Evans e cultivando um jazz orquestral de grande originalidade e sofisticação.

A aparição destes seis soberbos discos, com formações e estéticas muito variadas, tornou evidente não só que Miles era, não um prodígio efémero que tivera a sorte de rubricar um disco genial aos vinte e poucos anos, mas uma figura cimeira do jazz, como estava “milhas à frente” dos seus parceiros. A partir de 1957, o mundo musical habituou-se a aguardar de Miles pelo menos uma obra-prima por ano – o que ele cumpriu até ao início dos anos 70.

voltar

Porto.